Os desafios da seguridade social para as trabalhadoras domésticas

12186661_1710020949231943_1756637884669085866_oPor Marilinda Marques Fernandes

O trabalho doméstico, seja remunerado ou não, é base fundamental para o funcionamento geral da economia capitalista. Quando remunerado, chamamos de emprego doméstico e caracteriza-se como importante fonte de ocupação para muitas mulheres, que representam cerca de 5,6 milhões de trabalhadores no Brasil, sendo, na maioria das vezes, a porta de entrada no mercado de trabalho, especialmente para as mais pobres.

Nos termos da Lei nº 5.859/72 considera-se trabalhadora doméstica a pessoa maior de 18 anos que presta serviços de natureza contínua e não-lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial.

Apesar de sua contribuição à sociedade como um trabalho importante para o funcionamento dos domicílios, para a economia é subvalorizado, mal regulamentado, e possuía um tratamento legal gritante, especialmente quando comparado àquele dispensado aos demais trabalhadores que podem se valer tanto dos direitos dispostos na Constituição quanto na CLT.

A partir de 1972, foram incluídas entre os segurados obrigatórios da previdência social. De acordo com a Constituição Federal de 1988, as empregadas domésticas passaram a ter os seguintes direitos regulamentados: salário mínimo, irredutibilidade do salário, décimo terceiro salário, repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos, férias anuais remuneradas com, pelo menos um terço a mais do que o salário normal, licença maternidade, aposentadoria, e a sua integração à previdência social.

Contudo, o parágrafo único do art. 7º da Constituição, que regula os direitos dos trabalhadores, continuava atentando contra o princípio da igualdade, pois se todos são iguais perante a lei, conforme o disposto no art.5º da Magna Carta, o regime jurídico das trabalhadoras domésticas não se apresentava coerente com o dos demais trabalhadores.

A Lei 10.208 de 2001 acresceu ainda algum direito a mais às trabalhadoras domésticas, notadamente o direito ao Fundo de Garantia Por tempo de Serviço (FGTS) e ao seguro-desemprego, estabelecendo que assumir a contribuição que permita o acesso a esses benefícios é opção do empregador, que, na maioria dos casos, tem optado por não contribuir, por falta de interesse ou e em benefício próprio.

Já a Lei nº 11.324 de 2006 veio, no seu art.4º-A, vedar a dispensa arbitrária ou sem justa causa da empregada doméstica gestante, desde a confirmação da gravidez até 5 (cinco) meses após o parto.

Constata-se, assim, que ao longo dos anos muitas conquistas foram alcançadas pelas trabalhadoras domésticas no que se refere aos direitos previdenciários, apesar de não estarem regulamentados na previdência social da mesma forma como são os outros segurados obrigatórios. Exemplo disso é o fato acima referido de que é o empregador doméstico que faz a opção de contribuir ou não para o FGTS, o que repercute também no acesso ao seguro desemprego. Outro fato a ser considerado é que o trabalhador doméstico também não possui direito ao beneficio previdenciário decorrente de acidentes de trabalho, ficando, deste modo, desprotegido das políticas de prevenção, reabilitação e reparação.

A aprovação da Emenda Constitucional nº72 (EC nº72) de 02 de abril de 2013, veio a se constituir em uma enorme vitória para a categoria das domésticas ao promover a alteração do parágrafo único do art.7º da Constituição, estabelecendo a igualdade de direitos trabalhistas entre as trabalhadoras domésticas e os demais trabalhadores urbanos e rurais.

Contudo, esta conquista de igualdade de direitos trabalhistas e previdenciários tem alcance limitado, uma vez que, ao assegurar dois tipos de direitos, a saber, os de vigência imediata, que entram em vigor na data da publicação da referida emenda, e aqueles que dependem de regulamentação legal para poderem ser exercidos, continuando a não assegurar de forma plena os mesmos direitos as trabalhadoras domésticas que aos demais trabalhadores formais sob o regime da CLT.

No campo dos direitos previdenciários com vigência imediata temos:

1.- Licença à gestante, sem prejuízo de emprego e do salário, com duração de cento e vinte dias;

2.- Licença paternidade;

3.- Redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;

4.- Aposentadoria;

Por outro lado, carecem de regulamentação legal futura para serem exercidos os seguintes direitos previdenciários e assistenciais:

1.- Seguro desemprego, em caso de desemprego involuntário;

2.- Fundo de Garantia do tempo de Serviço – FGTS;

3.- Seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa;

4.- Salário família, pago em razão do dependente do trabalhador de baixa renda;

5.- Assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 5 (cinco) anos de idade em creches e pré-escolas.

É no campo da regulamentação destes direitos da seguridade social que se centram os desafios das trabalhadoras domésticas.

Em 06 de maio de 2015 o Senado Federal aprovou a redação final do projeto de Lei nº224, de 2013 (PLS nº224/2013), remetido no dia 12 deste mês à sanção da Presidente da República, que instituiu, entre outros aspectos, o Simples Doméstico, que permite pagar os tributos, contribuições e demais encargos do trabalhador doméstico de forma unificada.

Estabeleceu, ainda, que a alíquota do INSS a ser recolhida pelo empregador mensalmente será de 8% do salário do trabalhador, em vez dos 12%, como é atualmente. Apesar de a alíquota ser menor, o empregador terá de recolher também os outros quatro pontos percentuais, da seguinte forma: 0,8% serão destinados a um seguro contra acidente e outros 3,2% para um fundo a ser transferido para o trabalhador na rescisão contratual. Esses recursos serão usados para o pagamento da multa de 40% do FGTS, em caso de demissão sem justa causa.

De se lamentar que o FGTS da trabalhadora doméstica não tenha seguido a regra geral, foi previsto como uma espécie de poupança, a ser transferida para o trabalhador na rescisão contratual, em caso de demissão sem justa causa, mas será revertida ao empregador nos casos de demissão por justa causa, licença, morte ou aposentadoria. O projeto permite também a dedução total da contribuição previdenciária no Imposto de Renda pelo empregador.

Na verdade, há o risco de estimular a demissão por justa causa e flexibilizar, de certa forma, o FGTS. A trabalhadora doméstica dispensada sem justa causa terá direito ao seguro – desemprego.

Consideramos que um dos desafios mais importantes no campo da seguridade social para as trabalhadoras domésticas neste momento é o da implantação de novos direitos da saúde e proteção no trabalho: cuidar da integridade física e mental das trabalhadoras domésticas.

O trabalho doméstico é visto muitas vezes como uma atividade segura, que não apresenta perigo para as pessoas que o realizam. No entanto, ele é sujeito a riscos, acentuados pelo cansaço acumulado pelas longas jornadas. Implica na realização de inúmeras tarefas e movimentos repetitivos, carregamento de objetos pesados, exposição a fontes de calor e objetos cortantes, manipulação de produtos químicos de relativa toxidade e exposição prolongada ao pó. A vulnerabilidade a este tipo de risco é maior para as trabalhadoras com baixa escolaridade pois, por vezes, não são capazes de ler ou entender instruções de uso de certos produtos, que normalmente são complexas ou mal redigidas.

As trabalhadoras domésticas têm estado excluídas da legislação de saúde e de proteção no trabalho, cuja atividade apresenta dificuldade para se controlar e fiscalizar a forma como são realizadas as tarefas, as ferramentas que utilizam e seus horários de trabalhos.

A saúde das trabalhadoras domésticas passa também pelo respeito à sua dignidade como pessoas, o que significa considerar os malefícios resultantes de situações de assédio moral e sexual e de maus tratos físicos a que por vezes são submetidas.

Assim, é imperativo o estabelecimento de um marco regulatório na prevenção de acidentes das trabalhadoras domésticas. Nesta perspectiva, há que se estabelecer os riscos potenciais e pensar a visita de agentes públicos que possam determinar a existência de riscos profissionais, assim como medidas para proteger as trabalhadoras, assessorar os empregadores na sua eliminação e promover ações de formação sobre os riscos no trabalho.

Outro desafio que se coloca no campo da previdência social é o da não contribuição das diaristas ou mensalistas, pois a precariedade no vínculo de trabalho traz consigo o problema da não contribuição previdenciária. Sabido que, apesar do crescimento ocorrido nos últimos anos, apenas 30,4% das trabalhadoras domésticas contribuem para a previdência social. A inexistência de contribuição resulta em prejuízos em curto e longo prazos, privando-as do acesso a direitos como afastamento por motivos de doença ou maternidade, além do prejuízo referente à aposentadoria, não só por idade como também por tempo de contribuição.

A aprovação da PEC das Domésticas é um passo fundamental para o reconhecimento das trabalhadoras domésticas, para a sua inclusão nos sistemas de proteção social e um avanço na promoção do Princípio da Dignidade Humana. No entanto, entendemos que a luta continua e que muitas medidas e ações ainda se fazem imprescindíveis para levar a cabo a efetividade dos direitos ora assegurados, tendo em conta a natureza, as condições particulares do trabalho doméstico, o elevado número de trabalhadoras sem carteira profissional assinada, a baixa afiliação aos sindicatos e as associações de trabalhadoras domésticas.

Assim sendo, mais do que nunca se faz imperioso fortalecer a organização sindical das trabalhadoras domésticas e criar formas de fiscalização do cumprimento do disposto na regulamentação da PEC nº72, de 02 de abril de 2013 ora sancionada pela Presidente da República em 02 de junho de 2015, infelizmente com a retirada do texto da previsão de visita do auditor fiscal sem agendamento com autorização judicial em caso de suspeita de trabalho escravo, tortura, maus tratos e tratamento degradante, trabalho infantil ou outra violação dos direitos fundamentais.

A luta continua!

Porto Alegre, 03 de junho de 2015

MARILINDA MARQUES FERNANDES

(Advogada especializada em Direito da Seguridade Social)

REFERÊNCIAS:

MOTA, A.E. Seguridade Social Brasileira: desenvolvimento histórico e tendências Recentes . São Paulo: Cortez, 2007.p.40-48;

REIS, Sérgio Cabral: A proteção da mulher no direito previdenciário. Manual dos Direitos da Mulher: Editora Saraiva, 2013. p.346-371;

PIOVESAN, Flávio. A proteção dos direitos sociais nos planos interno e internacional. In: CORREIA, Marcus Orione Gonçalves; CORREIA, Érica Paula Barcha (Coord.) Direito previdenciário e Constituição: estudos em homenagem a Wladimir Novaes Martinez. S.Paulo: LTR 2004, p.14.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

×