Por Leonardo Serrat de Oliveira Ramos
Aparentemente há uma unanimidade no mundo: táxis são caros, seus serviços são precários ao não oferecerem comodidades que se entendem como fundamentais nos dias de hoje (internet, água, revistas e jornais), há uma porcentagem de motoristas acreditando que estão fazendo um favor ao passageiro ao pegá-lo (e não que estão prestando um serviço público), aumentam o trajeto da corrida quando o passageiro não conhece o caminho e outros problemas.
Então surge uma startup?—?que em pouco tempo alcança o valor de mercado de US$ 51 bilhões [1]?—?prometendo resolver esses problemas a partir de um pensamento cool de economia compartilhada.
Apegando-se a um controverso conceito de livre mercado até mesmo para diversas cidades de seu país de origem, implementa sua sistemática de funcionamento ao arrepio de legislações nacionais, essencialmente ingressando no mercado local e aguardando a reação de seu poder público.
Não à toa enfrenta banições parciais ou totais na França, Alemanha, Holanda, Itália e Espanha[2]. E em que pese arguir a segurança do transporte oferecido por meio de verificações criminais de seus motoristas cadastrados, um Promotor de São Francisco (EUA) descobriu que 25 deles tinham registro em fichas criminais [3] e o Tribunal de Nova Délhi (Índia) condenou um deles por estuprar uma passageira [4].
Mas como afinal surgiram os táxis e por qual motivo eles são fortemente regulamentados pelo poder público em todos ou praticamente todos os países?
Uma boa pista para isso foi a experiência de Nova York, EUA. Nesse excelente artigo[5] do jornalista Pedro Burgos é demonstrado como a crise de 1929 contribuiu para isso:
Sem regulação, a cidade chegou a ter 30 mil táxis circulando. Logo, motoristas tinham que trabalhar 16 horas por dia para conseguir o suficiente para comer: a concorrência desenfreada fez o preço da “bandeirada” cair e os congestionamentos ficaram insuportáveis.
E então a solução encontrada:
Até que, em 1937, o novo prefeito Fiorello La Guardia implementou o sistema de medallions, algo como o alvará (ou autonomia ou permissão, dependendo da cidade brasileira) que temos hoje. A ideia: reduzir o número de táxis disponíveis e limitá-los a cerca de 14 mil. Isso garantiria corridas para todos os taxistas a um preço digno e ao mesmo tempo limitaria os carros, desafogando o trânsito. Para dar um golpe na máfia, ele limitaria a 60% as licenças de táxi para empresas, enquanto 40% ficaria com os indivíduos. O custo da licença era relativamente baixo (10 dólares), então ser taxista era uma boa forma de ser microempreendedor, especialmente para os imigrantes.
E assim como na década de 30, a mesma Nova York, em 2015, os veículos vinculados ao Uber superaram o de táxis da cidade [5, 6], resultando na já, porém ainda pequena, queda de 4% no valor arrecadado pelos motoristas de táxi no ano[6].
Agravado a esse cenário de perda de renda por parte dos trabalhadores, está o fato de que o Uber não vê em seus motoristas um elo fundamental para prestar o seu serviço, pelo contrário, o seu objeto é ter frotas de carros que se dirigem autonomamente sem que haja a interferência humana[7], estabelecendo para isso parcerias como a da Universidade do Arizona (EUA)[8].
Em face disso, mostra-se na melhor das hipóteses desconhecimento e na pior de má-fé a argumentação no sentido de facilitar o empreendedorismo de trabalhadores por meio do Uber, visto que isso nunca foi a sua pretensão e investe massivos recursos financeiros para justamente não precisar esse vínculo humano em pouco tempo.
Há, de qualquer forma, a problemática de que há um desejo legítimo dos consumidores de terem um serviço sem os problemas apontados no início desse artigo, ao mesmo tempo que há um desejo também legítimo dos taxistas de não perderam a sua renda.
De outra perspectiva, temos o embate entre uma empresa de 50 bilhões de dólares e centenas de sindicatos locais de taxistas. E então temos ações que tangenciam ao dumping (oferecimento de serviço ou produto abaixo de seu valor de custo) por parte da empresa para conquistar e capturar a grande massa de consumidores insatisfeitos com os taxistas por meio de descontos agressivos nas corridas, assim como com promoções habilmente pensadas por seu setor de Marketing, como oferecer picolés de graça em diversas cidades[9].
Além disso, o Uber abriu também uma frente jurídica, contratando juristas para emitirem pareceres sobre a sua situação legal. No primeiro deles, de Daniel Sarmento, está o entendimento de que, a partir de uma interpretação conforme a Constituição Federal, é lícita a atividade desenvolvida por essa empresa, a partir de uma hermenêutica de livre mercado e assimetria regulatória [10]. Em entendimento contrário ao desse parecer jurídico está Lenio Streck e Rafael Oliveira ao defenderem que é necessário que o Estado organize e fiscalize o serviço de transporte individual de passageiros por meio de legislação local [11].
No outro lado, os sindicatos de taxistas, que via de regra não dispõem de um setor profissional de Marketing, de Direito, e nem costumam compreender a importância de ser cool, promovem ações, vejam só, típicas de sindicato, como obstrução de vias públicas e forte pressão em políticos para criação de legislação restritiva ao Uber e ao seu entendimento de livre mercado, o que não costuma agradar a população.
Para além de tudo isso, há ainda os que colocam como ingredientes a esses embates a falsa dicotomia entre tecnologia e métodos não tecnológicos. Conforme bem defendido nesse artigo [12] de Ibrahim Cesar (que é favorável ao Uber):
O jocoso Sensacionalista publicou: “Depois da proibição do Uber, datilógrafos querem o fim do computador”. Outro artigo dizia que “charretes” substituiriam os carros. Esta, é uma dicotomia falsa. O Uber, por exemplo, não é uma tecnologia per se. Ele não é uma nova forma das pessoas se locomoverem. Ele não resolve os problemas de deslocamento. Ele coloca novos carros nas ruas, que somente serão ocupados por uma pessoa, preferencialmente, a cada viagem, além do motorista é claro. A tecnologia do Uber é o aplicativo que ele usa conectando os pares: motoristas e pedestres e o sistema de pagamento através de cartão de crédito.
Essa dicotomia se mostra também falsa especialmente quando já se tem à disposição aplicativos que interligam passageiros e taxistas, em sistema muito semelhante de funcionamento ao da plataforma disponibilizada pelo Uber. Na verdade, colocar a disputa como entre aqueles que estão a favor da tecnologia e aqueles que são contrários a ela é apenas um argumento persuasivo a favor da importância de ser cool.
Uma vez que os problemas referentes aos táxis são conhecidos pela população e pelo poder público, é plenamente possível de enfrentá-los em sua causa, e não em sua consequência, como se tem enfrentado. Os problemas listados no início desse artigo são consequências, cuja causa está ligada a ineficiência estatal no controle da permissão concedida.
Ao ler os comentários de praticamente qualquer notícia que envolva o Uber, percebe-se que os consumidores foram capturados pelo eficiente sistema de Marketing da empresa, de modo que não estão preocupados prioritariamente em buscar a solução das causas dos problemas dos táxis com a melhora desse serviço, mas sim em autorizar o funcionamento dessa empresa ou mesmo para que ela venha a atuar em suas cidades, pois isso resolveria os problemas hoje enfrentados com os taxistas.
Uma das formas de combater as causas dos problemas que envolvem os táxis buscando o seu aperfeiçoamento seria a implementação de um serviço público de avaliação dos motoristas igualmente por meio de aplicativos e/ou outros formas possíveis, pois é tecnologicamente possível de ser implementado e com custo relativo baixíssimo para os grandes municípios – exatamente onde o Uber atua –, podendo-se incluir penas administrativas caso a avaliação esteja abaixo do patamar entendido como mínimo necessário para permanecer no serviço.
Quanto ao fator custo das tarifas dos táxis é preciso que o poder público local tenha a eficiência para impedir e punir o comércio ilegal de permissões/alvarás, pois uma parte considerável dos taxistas das grandes cidades acaba-o “alugando” para poder exercer o trabalho, retirando-lhe boa parte, se não a maior parte, da renda que acabaria auferindo e que poderia investir em seu próprio serviço e lhe dar maior dignidade. Em casos extremos, surge o “Barão das placas”[13] de Porto Alegre/RS, que concentrou dezenas delas por meio de compra e transferências que desafiam o sistema jurídico e distorce o sentido de uma permissão de serviço público.
No sentido da regulamentação do serviço de transporte privado de passageiros como pretende o Uber (de ampla liberdade a operadoras ancoradas em aplicativos), mostra-se uma saída socialmente despreocupada e financeiramente restritiva.
Como bem defendido nesse artigo sobre a elitização do Uber publicado no site do (formalmente inexistente) Partido Pirata brasileiro[14], se uma pessoa da periferia quiser pegar o seu carro e oferecer o transporte privado para as pessoas que estão na rua, ela não só não poderá oferecer como ainda deverá ser processada pelo poder público local. Já se uma pessoa que possui um carro de luxo e/ou novo (conforme a modalidade que se enquadre nos modelos aceitos pelo Uber) e quiser oferecer o mesmo transporte privado, só que via Uber, então não haveria irregularidade.
Ora exigir que as pessoas tenham um determinado padrão de carro não pode ser entendido como livre mercado, pois isso pressupõe que qualquer carro – desde que seguro – possa ser ofertado, cabendo ao mercado ajustar a demanda pela preferência dos consumidores.
Mais restritivo ainda é vincular o oferecimento de serviço a aplicativos. Um fator é um grande município pagar programadores para eles desenvolveram e manterem um aplicativo, cujo custo proporcional será ínfimo no orçamento do município. Outro fator muito diferente seria exigir que os particulares tenham que necessariamente oferecer o seu serviço por meio de um aplicativo individual ou mesmo que de forma associada, pois o custo de se criar e de se manter esse aplicativo seria uma efetiva barreira de ingresso no mercado. Além do custo, parece razoável crer que as pessoas não teriam instalado em seus smartphones diversos aplicativos, preferindo um ou dois que congregassem o maior número de veículos disponíveis, impondo uma indireta barreira de ingresso no mercado.
A regulamentação do serviço de transporte particular oferece ao menos outros dois caminhos possíveis melhores do que o proposto pelo Uber: a liberdade plena ou a regulamentação pública.
A liberdade plena é a defesa da já citada opinião publicada no site do Partido Pirata. Citando extenso estudo de Roberto Cevero (Universidade da Califórnia, EUA) que tem como conclusão[15]:
regulamentações deveriam focar estritamente em: segurança e indenização aos passageiros por má prestação de serviço, deixando práticas de serviços (e.g., rotas e horários), preços, níveis de conforto e conveniência a cargo de ações voluntárias de fornecedores e consumidores.
Essa proposta tem como vantagem a inexistência total de barreiras ao ingresso no mercado, não categorizando e não legalizando apenas conforme a renda do motorista, retirando, assim, o caráter elitista da proposta do Uber, e permitindo que pessoas sejam totalmente autônomas no oferecimento do serviço, sem que precisem estar vinculadas a uma grande empresa privada. Por outro lado, tem como desvantagem a premissa da capacidade de auto-regulamentação do mercado, o que não deu certo na Nova York de 30, conforme já referido nesse artigo – ao causar problemas no trânsito e achatar a renda do trabalhador para níveis insustentáveis –, embora o estudo cite casos em que isso teria funcionado (Tailândia, Filipinas, Indonésia e outros países).
Uma outra solução é a buscada em São Paulo/SP, que criou uma nova categoria de serviço, de funcionamento semelhante ao modelo do Uber, porém controlado pelo poder público e com 5 mil alvarás concedidos conforme variados critérios[16].
A vantagem desse serviço é a maior segurança na verificação dos requisitos para se conceder a licença, a maior eficiência no controle dos motoristas pelo aplicativo gerenciado pelo poder público em comparação ao atual sistema de controle de táxis e um controle da oferta para que não achate a renda dos trabalhadores. A desvantagem é a barreira ao ingresso no sistema, pois ele não é livre, e, para quem defende um Estado mínimo, está numa ingerência que seria excessiva do Estado numa atividade que a iniciativa privada teria condições de auto regulamentar e de oferecer melhores soluções do que as ofertadas pelo poder público local.
Portanto, o mérito do Uber foi ter se aproveitado de um descontentamento de consumidores pelo serviço de táxi em face de um ineficiente sistema de controle pelo poder público local, aproveitando-se das consequências para apresentar soluções sem que precise atacar as suas causas. Ancorado em um sistema de apresentação descolada, focado em um público-alvo que dorme com smartphone ao lado do travesseiro, utilizando-se de práticas econômicas limítrofes de dumping, de modernas campanhas de Marketing e de pareceres jurídicos encomendados, busca capturar consumidores, poder público e judiciário a seu favor. No fim, a defesa da regulamentação proposta pelo Uber nada mais é do que a defesa de um sistema socialmente despreocupado, de barreiras econômicas que resultam em um falso livre-mercado, potencialmente gerador de monopólio e, num futuro breve, de achatamento da renda dos trabalhadores e, por fim, em um massivo desemprego no setor por meio de carros autônomos.
[2] http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/08/150812_uber_regulamentacao_pai_ac
[4] http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/10/motorista-do-uber-e-condenado-por-estupro-na-india.html
[5]http://motherboard.vice.com/pt_br/read/o-uber-nao-e-o-futuro
[6]http://brasil.elpais.com/brasil/2015/03/18/economia/1426687062_922621.html
[8]http://www.voit.com.br/parceria-entre-uber-e-universidade-impulsiona-carro-que-dirige-sozinho/
[10]http://s.conjur.com.br/dl/paracer-legalidade-uber.pdf
[15] http://mirror.unhabitat.org/pmss/getElectronicVersion.aspx?nr=1534&alt=1
Leonardo Serrat de Oliveira Ramos