Segunda-feira ao sol (Lunes al sol, Fernando León de Aranda, Espanha, 2002). Nos anos 1990, na Espanha, um estaleiro encerra suas atividades e deixa mais de 200 trabalhadores desempregados. As atividades produtivas foram transferidas para a Coréia do Sul. Os metalúrgicos espanhóis sabem que lá os salários são muito inferiores aos que eles recebiam e que esse fator foi decisivo na transferência da empresa.
Regiões industriais consolidadas, antigas, com uma classe trabalhadora com tradição de organização coletiva, lutas e conquistas de direitos obtidos no confronto com o empresariado, passaram a ser obstáculos ao capital na busca de aumentar sua lucratividade e fazer frente à maior competição no mercado internacional. Na versão neoliberal da interpretação dos tempos contemporâneos, a demanda permanente por aumentos salariais desses trabalhadores – e a capacidade de obtê-los – teria sido um dos fatores da crise que emergiu na sociedade capitalista a partir dos anos 1970. Canalizando os lucros para os salários, teria diminuído a capacidade de investimentos das empresas, ao que se somariam as elevadas cargas tributárias, a fim de sustentar um Estado exageradamente generoso nos benefícios e serviços prestados à população, o que teria desestimulado inversões nos setores produtivos, prejudicando o dinamismo da economia.
É nesse cenário que se desencadeia um processo de reorganização da economia capitalista a que se convencionou chamar de reestruturação produtiva e que comporta grandes transformações na organização das empresas, inovação tecnológica, redefinição do papel do Estado, restrição ou supressão das regulações do trabalho. A transferência geográfica de atividades produtivas industriais ou de serviços é um dos componentes das transformações e estratégias que se dão no âmbito das empresas. A existência de uma força de trabalho barata, sem tradição de luta e de organização, somada a benefícios recebidos do poder público são fatores decisivos na opção de realocação das empresas, que tanto podem se instalar dentro do próprio território nacional como em outros países. Neste caso, uma nova divisão do trabalho se modela, em âmbito planetário
Pesa muito nas decisões das empresas sobre onde investir, a existência de governos hostis à organização e a manifestações populares, que assegurem “normalidade social e política”, condição favorável àquelas decisões. Para as regiões receptoras, a presença de uma nova empresa é, em geral, bem recebida pela população devido à geração de empregos, sem que os custos a médio e longo prazos decorrentes da perda de receita pelos cofres públicos sejam considerados, assim como os danos ambientais que possam advir da atividade instalada ou qualquer outra consequência. Por parte dos trabalhadores, a defesa do empreendimento aferra-se a sua capacidade imediata de oferecer postos de trabalho, independente de efeitos nefastos que dele possam resultar.
As regiões que são abandonadas caem em decadência econômica, passam a ter altas taxas de desemprego, falta de oportunidades de reinserção no mercado de trabalho para os demitidos da empresa trânsfuga e agravamento de problemas sociais, coletivos e individuais. É disso que trata o filme Segunda-feira ao sol. O cotidiano desses trabalhadores é vazio, sem perspectivas. A busca por uma nova colocação no mercado de trabalho é infrutífera. Diariamente, eles cruzam a baía num ferryboat partilhando sua desesperança: não são jovens, não possuem as competências exigidas pelos empregos anunciados e disputados por muitos candidatos, em geral mais jovens e mais preparados para o uso de novas tecnologias, demandas dos postos de trabalho que são disponibilizados em outros setores de atividades. A tentativa de um dos personagens de aprender a operar um computador com o auxílio do filho adolescente é desanimadora. Pintar o cabelo e vestir as roupas do garoto para parecer mais jovem também não produzem os efeitos esperados. O fracasso desses artifícios só serve para alimentar o desalento e tornar evidente a não empregabilidade de trabalhadores de uma época que está no fim. Seus saberes profissionais vão se tornando obsoletos e eles já não se sentem motivados ou estimulados para novas aprendizagens. Suas vidas estão esvaziadas. São velhos demais para conseguirem novas colocações no mercado de trabalho, mas ainda não suficientemente velhos para gozarem a aposentadoria. Sua perspectiva é a ausência de perspectivas de se reintegrarem no mercado de trabalho.
Os efeitos da ociosidade involuntária se manifestam sobre a vida familiar dos personagens. A viagem de retorno sempre adiada da mulher de um deles deixa-o coberto de vergonha e profundamente amargurado, levando-o à situação extrema de pôr fim à própria vida. Outro personagem passa pela humilhação de ser apenas coadjuvante da própria mulher num pedido de empréstimo bancário, pois, sendo desempregado, não pode oferecer garantias, o que o leva a questionar: “Não sou pessoa ativa na família. Então, o que sou?”. Com a perda do emprego esboroa-se a estrutura identitária e a autoestima declina. A condição de desempregado cai pesadamente sobre seus ombros, pois ainda é muito arraigada a concepção de que o homem é o natural provedor do grupo familiar, e a impossibilidade de cumprir essa função estigmatiza-o aos próprios olhos. Sua inatividade, confrontada com a rotina de trabalho da mulher, torna-se ainda mais humilhante.
No entanto, a condição precária do emprego da mulher é um agravante da situação. Ela mantém com a empresa de enlatar pescado um contrato temporário, uma das modalidades resultante da desregulamentação das relações laborais pela qual as empresas admitem ou dispensam trabalhadores segundo as necessidades da produção, decorrentes da flutuação das demandas do mercado. Essa e outras modalidade de contrato (em tempo parcial, a domicílio, subcontratação e terceirização, por empreitada ou por projeto) vêm gradativamente substituindo os contratos típicos de assalariamento (Beynon, 1999), que asseguravam a integralidade dos direitos laborais conquistados em cada contexto nacional. Agora, as empresas se desoneram desses encargos trabalhistas, ajustando o número de seus empregados as suas necessidades particulares e conjunturais, sem ônus rescisórios. Essas configurações laborais são caras aos apologistas do empreendedorismo, para quem, sem as amarras do trabalho assalariado, cada um tem a chance de exercitar sua criatividade na reconstrução da sua vida.
O contrato de trabalho temporário da mulher de um dos desempregados impede-a de obter o pretendido empréstimo bancário, revelando uma das facetas da precariedade de sua inserção no mercado de trabalho. A isso se somam as condições pouco dignificantes da sua rotina na fábrica, a permanente vigilância a que é submetida, a ausência de condições mínimas de conforto no desempenho de suas funções, fatores comuns ao trabalho de todos os operários na empresa e, no caso dela, agravadas pelo assédio de seu chefe. É a síntese das dificuldades das mulheres trabalhadoras no contexto de profundas transformações do capitalismo contemporâneo.
A taberna em que os desempregados se encontram é o local de partilharem suas mágoas e ressentimentos, especialmente contra os ex-companheiros de trabalho que negociaram a rescisão de seus contratos com a empresa, atitude considerada uma traição aos interesses do conjunto dos trabalhadores. Na taberna, são discutidas as possíveis soluções ou estratégias para o ócio compulsório a que foram submetidos com a demissão: a compra do bar onde eles se reúnem, a persistência na busca de realocação no mercado de trabalho; a transgressão aos marcadores sociais da divisão sexual do trabalho, fazendo um dos personagens aceitar o trabalho como babá, substituindo a filha do dono do bar, que marcara encontro com o namorado; ou, no limite, a desistência de continuar vivendo.
Parece não haver solução coletiva. O sindicato é impotente para definir estratégias de negociação com a empresa que possam contemplar os interesses dos trabalhadores, restando a eles cruzarem a baía, num percurso pendular que não leva a lugar nenhum.
As relações entre capital e trabalho oscilam entre colaboração e conflito, articulando dominação e resistência, com manifestações individuais e coletivas de distintas intensidades. No lado do capital, um largo espectro de estratégias que incluem a organização do processo de trabalho e suas normas impositivas, disciplinando a força de trabalho, até o uso da violência contra ações de reivindicação dos trabalhadores, não raro com o apoio das forças de repressão do Estado.
No pólo do trabalho, manifestações que podem ir da greve à observação rigorosa das prescrições das tarefas (tal como a operação-padrão, que diminui a produtividade em conseqüência da incorporação de procedimentos usualmente negligenciados pelos trabalhadores, com o discreto aval das empresas), da sabotagem à operação tartaruga, da ação violenta à resistência passiva.
No filme, a resistência do trabalho às estratégias do capital é contemplada no episódio da destruição da luminária no pátio da empresa pelo protagonista da história: num gesto de raiva durante uma manifestação contra o fechamento do estaleiro, ele joga uma pedra numa das luminárias, destruindo-a. Levado a julgamento, é condenado a pagar o valor do equipamento. Cumpre a sentença, retorna ao estaleiro e repete a transgressão: apanha uma pedra do calçamento e quebra a luminária que havia sido recolocada.
Mas essa atitude é individualizada, impulsiva, sem articulação coletiva fundada num projeto de ação transformadora da realidade vivida ou de busca de equacionamento dos problemas enfrentados. Não há o que fazer, a impotência diante do poder de decisão de esferas hostis aos trabalhadores (a empresa, encerrando as atividades da planta e transferindo-a para outro país, indiferente às consequências para os trabalhadores; a justiça, condenando o transgressor) parece ser inevitável e insuperável. Esse é o cenário dominante nas regiões em que tem se verificado o processo de desindustrialização: deixando para trás o que já não serve aos objetivos do capital, tornando obsoletas parcelas da força de trabalho local e expandindo, em âmbito planetário, suas estratégias de otimização da acumulação, submetendo amplas regiões e sua população que antes viviam à margem dessa lógica. É a globalização e suas mazelas.