DECRETO 10.410/2020 – A CONSOLIDAÇÃO DA PREVIDÊNCIA MÍNIMA SOCIAL

 

Com a Emenda Constitucional 103 de 2019, era esperado a adequação da legislação previdenciária ás alterações levadas a cabo pela mesma, por via  de lei complementar  dispondo sobre as novas regras .

Contudo diferentemente do previsto no ordenamento jurídico brasileiro, o Poder Executivo publicou no último dia 30 de junho de 2020, o Decreto 10.410/2020, extrapolando sem duvida sua capacidade normativa, eis que cria situações e regras que deveriam ser tratadas exclusivamente em Lei.

O Decreto 10.410/2020 altera o Regulamento da Previdência Social, de maio de 1999, consolidando grande parte das alterações realizadas na legislação dos últimos dez anos.

As alterações têm um viés manifestamente restritivo no campo de acesso, manutenção e valor dos benefícios previdenciários e já estão  em plena vigência.

De positivo cabe destacar a inclusão como segurados da Previdência Social, na categoria de contribuinte individual, de várias atividades, como motoristas de aplicativos, artesãos, repentistas. Os trabalhadores em regime de trabalho intermitente também passam a ser considerados como segurados e são estendidos direitos previdenciários ao trabalhador doméstico. Agora, eles terão direito a benefícios acidentários, como auxílio por incapacidade temporária e aposentadoria por incapacidade permanente – novas nomenclaturas para auxílio-doença e aposentadoria por invalidez, respectivamente.

O novo regulamento também aborda o trabalho do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) incentivando o órgão a prestar serviços por meio de canais de atendimento eletrônico, ignorando a realidade do povo carente da periferia, sem acesso a internet e aplicativos, pois muito embora  admita  o atendimento presencial nos casos em que o requerente não disponha de meios adequados para apresentação da solicitação, sabemos como a burocracia se complica quando se foge da regra.

Quanto às principais mudanças trazidas pelo Decreto ora vigente, destacamos a seguir os seguintes pontos:

A aposentadoria por idade híbrida só pela regra permanente

A nova redação do art. 57 do Decreto 3.048/99 dispõe sobre a possibilidade de concessão da chamada aposentadoria por idade híbrida (soma de tempo urbano e rural para atingir os requisitos carência/tempo de contribuição).

O curioso é que o novo Decreto limita o direito àqueles que cumprirem os requisitos da aposentadoria por idade pela regra permanente, quais sejam:

  • 62 anos, se mulher, e 65 anos, se homem;
  • 15 anos de tempo de contribuição, se mulher, 20 anos de tempo de contribuição, se homem.

Isto é, o Decreto aparentemente excluiu a possibilidade de concessão da modalidade híbrida na aposentadoria por idade pela regra de transição, que tem os seguintes requisitos:

  • 60 anos, se mulher, e 65 anos, se homem – idade mínima para mulheres com aumento progressivo de 6 meses por ano a partir de 2020, chegando a 62 anos em 2023;
  • 15 anos de contribuição para ambos os sexos;

Ora estamos assim diante de uma clara extrapolação regulamentar. Pois a aposentadoria híbrida está prevista na Lei 8.213/91 (art. 48, § 3º) e sua aplicação é condicionalmente ligada à aposentadoria por idade.

Nesse ponto, o art. 18 da EC 103/2019  é claro ao assegurar que para os segurados filiados à previdência até a data de início de sua vigência, será concedida aposentadoria por idade conforme requisitos de transição acima mencionados.

O período de afastamento por incapacidade não pode mais ser computado como tempo especial

Manifesta perda para o Segurado uma vez que a nova redação do art. 65 do Decreto 3.048/99 suprimiu a previsão sobre a possibilidade de o período em gozo de benefício acidentário ser considerado tempo especial.

Isto significa que aquele trabalhador que desempenha atividade especial (estatisticamente o mais sujeito a acidentes laborais), não terá computada a especialidade de período em gozo de benefício por incapacidade nem mesmo se decorrente de acidente de trabalho.

Tal regulamentação está em sentido diametralmente oposto ao entendimento recentemente firmado no Tema 998 do STJ, que garante inclusive o cômputo de período em gozo de benefício não acidentário como especial. A  tese firmada:

Tese Firmada Tema/Repetitivo 998 STJ:

O Segurado que exerce atividades em condições especiais, quando em gozo de auxílio-doença, seja acidentário ou previdenciário, faz jus ao cômputo desse mesmo período como tempo de serviço especial.

Com efeito, esse é mais um ponto que possivelmente será objeto de delongas e muitas discussões no poder judiciário.

Período em benefício por incapacidade não conta para carência

O novo art. 19-C, § 1º, dispõe que será computado o tempo intercalado de recebimento de benefício por incapacidade, exceto para efeito de carência.

Neste ponto também a nova regulamentação diverge radicalmente da jurisprudência já consolidada.

Pois tivemos em sentido contrário, o julgamento de duas Ações Civis Públicas, a n. 0216249-77.2017.4.02.5101/RJ e a n. 2009.71.00.004103-4/RS, que determinaram ao INSS a contagem, para efeito de carência, de período em gozo de benefício por incapacidade acidentário ou não.

Por via de acautelamento somos de opinião ,  de que o segurado deverá  verter contribuições como facultativo durante o recebimento de benefício por incapacidade. Garantindo a contagem da carência no período.

Reafirmação da Data de Entrada do Requerimento (DER)

Embora não se trate de nenhuma novidade, essa é uma das alterações positivas do Decreto: a possibilidade de reafirmação da DER.

Não é novidade porque a IN 77/2015 do INSS (art. 690) e o STJ (Tema 995) já garantiam essa possibilidade.

A reafirmação da DER pode ser de extrema importância naqueles casos em que o segurado não preenchia os requisitos no momento do requerimento, mas vem a implementar posteriormente, no curso do processo administrativo ou judicial.

Agentes cancerígenos – não há mais especialidade presumida

Na antiga redação do § 4º do art. 68 do Decreto 3.048/99 havia previsão de que, uma vez presente agente cancerígeno no ambiente de trabalho, estaria comprovada a efetiva exposição e, consequentemente, a especialidade da atividade.

Ou seja, não eram consideradas medidas de controle, níveis de exposição nem tampouco eventual utilização de equipamentos de proteção individual.

O novo texto do dispositivo agora prevê que “caso sejam adotadas as medidas de controle previstas na legislação trabalhista que eliminem a nocividade, será descaracterizada a efetiva exposição”.

Assim, esse é mais um ponto do Decreto que diverge da jurisprudência e se consolida no sentido de apontar para um sistema previdenciário cada vez mais longínquo de uma efetiva proteção do trabalhador e do principio fundamental de assegurar a dignidade do segurado em situações de vulnerabilidade  . Na 4ª Região foi julgado o IRDR n. 15, que fixou tese no sentido de que, em se tratando de agente reconhecidamente cancerígeno, a ineficácia dos equipamentos de proteção é presumida.

Contagem do tempo de contribuição

Até à promulgação do decreto 10.410/20 contava-se o tempo de data a data, ou seja, se o empregado começava a trabalhar no final de um mês e saía do emprego no início de outro mês, contavam-se apenas os dias trabalhados nesses meses. Com o novo decreto, na competência em que o salário de contribuição for igual ou superior ao limite mínimo mensal serão computados todos os dias do mês, independentemente do número de dias trabalhados. Na nova contagem, portanto, será levada em consideração a competência e não mais os dias do mês.

Cadastro dos segurados especiais

 O novo regulamento prevê que o Ministério da Economia manterá sistema de cadastro dos segurados especiais no Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS), de forma a permitir a concessão automática dos benefícios, da mesma forma que os trabalhadores urbanos. Esse cadastro será atualizado anualmente por meio da apresentação, pelo segurado especial, de declaração anual, sem qualquer ônus, até o dia 30 de junho do ano subsequente ao ano-base.

Salário-família

Pela regra anterior, o salário-família possuía valores diferentes, conforme a faixa salarial do empregado. Com a nova regra, o valor do salário-família foi unificado no valor mais alto. Neste ano, o valor da cota foi estabelecido em R$ 48,62, desde que o segurado tenha salário de contribuição inferior ou igual a R$ 1.425,56.

Salário – maternidade

O decreto traz uma inovação que permitirá, no caso de óbito do segurado ou da segurada que fazia jus ao recebimento do salário-maternidade, o pagamento do benefício pelo tempo restante a que o segurado ou a segurada teria direito ou por todo o período, ao cônjuge ou companheiro sobrevivente que tenha a qualidade de segurado.

Auxilio-reclusão

Pela regra anterior, o auxílio reclusão era devido aos dependentes do segurado recolhido à prisão em regime fechado ou semiaberto. Pela nova regra, somente será devido aos dependentes do segurado recolhido à prisão em regime fechado e o benefício não poderá ter valor superior a um salário mínimo.

Atividades concomitantes

As atividades concomitantes nada mais são do que ter mais de um emprego ao mesmo tempo, o que se mostra comum para profissionais da saúde e professores, como exemplo, um médico presta serviço como plantonista em um hospital e ao mesmo tempo, em dia diverso, em sua clínica. Portanto, o período concomitante é o tempo em que um trabalhador teve duas atividades simultâneas, e recolheu a contribuição para a Previdência Social durante esse período sobre as duas.

Hoje o trabalhador tem direito a somar suas contribuições realizadas no mesmo mês, porém para as aposentadorias concedidas antes de junho de 2019 (Lei 13.846/19) não se somavam. No cálculo anterior a 18 de junho de 2019 era feita uma classificação sobre a atividade principal, onde o segurado permaneceu por mais tempo empregado e a atividade secundária, àquela com menor tempo de contribuição. Portanto, cabível pedido judicial de revisão.

O Decreto encerrou de vez o tema, pois além da Lei 13.846 que previa o direito de somar as atividades recolhidas no mesmo mês, o mesmo não faz distinção entre atividade secundária e principal.

EM SUMA, o novo Decreto segue na senda das perdas históricas de direitos trabalhistas e previdenciários, vivemos tempos de precariedade que se refletem nas novas formas de organização do trabalho, de um novo viés privatista da Previdência Social e de um deslocamento do direito à proteção social para o assistencialismo.

Porto Alegre, 8 de julho de 2020

Marilinda Marques Fernandes

(Advogada especializada em Direito da Previdência Social)

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