A Folha de S. Paulo em sua edição impressa de domingo, 9 de julho de 2017, publicou matéria de página inteira afirmando que a fórmula 85/95 eleva a desigualdade, causando perplexidade e estranheza, principalmente em uma sociedade profundamente desigual e com uma concentração de renda em níveis verdadeiramente escandalosos. Porém, essa realidade se dá não em razão de politicas de Previdência Social, mas sim da omissão de levar a cabo efetivas políticas de redistribuição de riqueza, de combate à exclusão e de fomento ao emprego. Colocar a luta de classes dentro do universo dos segurados da Previdência Social, cujo o teto de contribuição é de R$5.530,00, e mais, classificar o trabalhador que contribui dentro deste teto como a elite da elite é no mínimo má fé e defesa explícita de uma Previdência só para os trabalhadores de renda mínima, canalizando os demais para a previdência privada.
Alega a articulista, Ana Estela de Sousa Pinto, que “a regra do 85/95 elevou ainda mais a desigualdade entre os mais ricos, com mais acesso ao trabalho formal, e os sujeitos a trabalho com vínculos mais precários, que se aposentam por idade.” Utilizar o conceito de mais ricos em relação ao trabalhador aposentado que aufere uma renda no patamar de R$5.000,00 só pode ser uma ironia, num País cuja fatia dos 1% mais ricos da população continua detentora de um quarto da renda produzida no país, e 5% detém metade da renda total.
A regra 85/95 foi a resposta ao clamor da classe trabalhadora que, tendo constitucionalmente assegurado o direito à aposentadoria ao cabo de 30/35 anos de contribuição à Previdência Social, tinha parte do seu benefício confiscado pela aplicação do fator previdenciário, que, aliás, ainda vigora concomitantemente como a regra 85/95. De acordo com o Instituto de Estudos Previdenciários a regra 85/95 proporciona mais garantias à sustentabilidade do sistema previdenciário público que o Fator Previdenciário, já que os trabalhadores acabam contribuindo por mais tempo para o INSS. A regra 85/95 é, assim, uma alternativa ao fator previdenciário, incidindo majoritariamente nas aposentadorias por tempo de contribuição e abrangendo um universo de tão somente 27% do total das aposentadorias concedidas cada ano.
A regra não favorece os mais “ricos”, mas sim aqueles que, por força da sua origem de classe, se viram muitas vezes obrigados a começar a trabalhar bem mais cedo. Questionar a regra neste momento, como o fez a Folha de S.Paulo, é colocar na ordem do dia a já concretizada a reforma trabalhista e a reforma da Previdência. Não é a regra 85/95 que elevou ainda mais a desigualdade entre os mais ricos, com mais acesso ao trabalho formal, e os sujeitos ao trabalho com vínculos mais precários, que se aposentam por idade. O que na verdade aumenta a desigualdade é o fosso entre classes, é a ausência de um projeto de nação que crie empregos e garanta a dignidade no trabalho, de uma politica efetiva de redistribuição de renda e uma verdadeira reforma tributária que tribute os mais ricos, as heranças e os ganhos da especulação financeira. Tudo, na verdade, na contramão do hoje, em que se destrói a CLT, se precarizam as relações de trabalho e se omite o combate à sonegação das contribuições previdenciárias por parte das principais empresas nacionais.
A Folha do S. Paulo fez o contrário do que se espera de uma mídia compromissada com o social e, sobretudo, com a formação de uma opinião crítica sobre as principais instituições de ordem pública, como é o caso da Previdência Social. O artigo da Folha vem na senda da retomada da agenda da reforma da Previdência, que tem sido anunciada como uma grande necessidade, supostamente porque haveria um déficit no setor e que no futuro não haveria dinheiro para pagar os benefícios. Na realidade, o verdadeiro problema das contas públicas não é a Previdência, como já referido anteriormente, mas outros fatores que buscam blindar os que sempre são privilegiados, para colocar a conta nas costas do trabalhador.
Indico aqui, por exemplo, a questionável dívida pública, que beneficia principalmente grandes investidores e bancos, que são exatamente os que mais vão ganhar com a precarização da Previdência Pública. Em 2017, o governo federal, conforme a Lei Orçamentária, planeja gastar 1,722 trilhão de reais com juros e amortizações da dívida, que jamais foi auditada, e que representa 50,66% do orçamento da união. Este valor é quase o triplo de todos os gastos previstos com a seguridade social, incluindo a Previdência Social (INSS e Regime Próprio dos Servidores Públicos), calculados em 650 bilhões de reais.
Por que as empresas devedoras ao INSS não são cobradas? De acordo com dados da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), 426 bilhões de reais é o montante dessa dívida, o que equivale a três vezes o alegado déficit da Previdência em 2016. A maior parte dessa dívida está concentrada na mão de poucas empresas ativas, como a JBS e o Bradesco. Somente 3% das companhias respondem por mais de 63% da dívida previdenciária. A procuradoria classificou 32.224 empresas devedoras e constatou que apenas 18% delas estão extintas. Ora, se a grande maioria, ou 82%, são ativas, somente um conluio entre o governo e empresas pode explicar a falácia do déficit, como argumento para a privatização da previdência pública.
É necessário acabar com as desonerações sobre a folha de pagamento das empresas, revisar as isenções previdenciárias e acabar com a Desvinculação de Receitas da União (DRU) sobre o orçamento da seguridade social, que retiram bilhões de reais e fragilizam o sistema de proteção social. Somente em 2016 a DRU desviou mais de 100 bilhões de reais do setor. A Reforma da Previdência não é uma saída para corrigir um anunciado deficit, que é falacioso. Trata-se de uma escolha política, que pretende retirar mais direitos trabalhistas e sociais para atender a quem sempre lucrou neste país, o que vai contra o princípio da proibição do retrocesso social, que atua como garantia de que os níveis de implementações dos direitos sociais já conquistados não serão reduzidos, de modo a preservar o mínimo da dignidade existencial humana.
Destacamos que o princípio da proibição do retrocesso social não se limita ao controle do poder de reforma constitucional, uma vez que a alteração de leis infraconstitucionais deve seguir os mesmos caminhos.
Por fim, o salutar parafraseamento de David Sanches Rúbio, por Uendel Domingues Ugatti, sintetiza com precisão a concepção do princípio da proibição do retrocesso social como consequência do princípio da dignidade da pessoa humana: “como não há dignidade humana que se afirme nem com a criação de situações de morte, nem com reações diante delas por meio de mecanismos que também a provocam; também podemos dizer que não há avanço social quando restringimos os níveis de acesso aos bens inerentes à realização da nossa humanidade, pois, em se tratando de dignidade humana, temos muito que fazer e não podemos permitir retrocessos quanto ao início, meio e fim dos direitos humanos: a existência humana digna”.
Porto Alegre, 12 de julho de 2017.
Marilinda Marques Fernandes