Na ocasião das comemorações pelo primeiro aniversário da aprovação da Lei Complementar 150 de 2015, que dispõe sobre o trabalho de empregadas domésticas, teve lugar o ato da ONG Themis — Gênero, Justiça e Direitos Humanos nesta terça-feira (26), na Estação Mercado da Trensurb, com o objetivo de conversar com trabalhadoras domésticas e informá-las de seus direitos. Das 8h30 às 15h, a equipe técnica da organização montou uma estrutura com mesas, cadeiras e cartazes e realizou a distribuição de panfletos para as pessoas que passaram pelo local, especialmente mulheres.
A atividade faz alusão ao Dia Nacional das Trabalhadoras Domésticas, comemorado nesta quarta-feira (27) e teve o apoio da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego e das Promotoras Legais Populares. Além da equipe técnica da Themis, estiveram presentes a presidente da Fenatrad, Creuza Oliveira, os procuradores do Ministério Público do Trabalho, Patricia Sanfelice e Rogério Fleischmann, a advogada previdenciária, Marilinda Marques Fernandes, as advogadas Raquel Paese e Camila Oliveira, do escritório trabalhista Paese e Ferreira Advogados Associados e a representante do Saju (Serviço de Assessoria Jurídica Universitária), Tatiana Corrêa, para conversar com as trabalhadoras domésticas e retirar suas dúvidas.
A presença das profissionais da Themis chamava atenção especialmente de outras mulheres que passavam pelo local, fazendo com que muitas saíssem lendo os materiais ou fossem até as profissionais para conversar. A atividade, embora inédita, está inserida no contexto de trabalho da organização, conforme explicou a coordenadora de projetos Michele Savicki. “Temos trabalhado com isso desde 2013, fizemos oficina por todo o Brasil para fortalecer redes de trabalhadoras domésticas, o que inclusive teve uma influência indireta na aprovação da lei que regulamentou a profissão, na medida em que consolidou sindicatos e organizações”, relata ela.
Embora seja uma das profissões mais antigas do país — considerada herança do período escravocrata — o trabalho doméstico só começou a ser regulamentado em 2015. As trabalhadoras, em sua grande maioria mulheres negras, tinham direito à carteira assinada desde os anos 1970, mas apenas em 2013 foi aprovada a proposta de emenda constitucional (PEC) que determinou que elas começariam a receber horas extras, adicional noturno e FGTS. No entanto, na prática, isso só foi regulamentado dois anos depois.
Agora, após a conquista de direitos com a regulamentação da proposta de emenda constitucional (PEC), a necessidade é empoderar e informar as trabalhadoras, aponta Michele. “Se elas sabem seus direitos, têm mais possibilidade de exigir que eles sejam cumpridos”, reflete, acrescentando que a Themis trabalha diretamente com mulheres de camadas mais excluídas do sistema de Justiça, como negras e de classes mais baixas, onde estão inseridas as trabalhadoras domésticas.
Além das próprias domésticas, patroas que passaram pela Estação também pegaram o panfleto, ou houve quem pegasse para algum parente, amigo ou conhecido. Foi o caso de Líria Flores, que trabalha no Jornal NH, em Novo Hamburgo, e mora em São Leopoldo, onde a mãe é trabalhadora doméstica. “Semana passada a gente tentou procurar onde havia um sindicato lá, mas não encontramos. Agora, perguntei aqui e poderemos ir no endereço certo, além de ter pego informações sobre os direitos dela com a nova lei”, afirmou ela, que não sabe se a situação da mãe já está regularizada.
Já uma diarista que passava pelo local chegou a se sentar e pedir orientações, perguntando as diferenças e semelhanças entre a situação dela e as leis aprovadas para domésticas. Segundo ela, que preferiu não dizer seu nome, a patroa “abusa” da sua boa vontade, não pagando horas extras quando é devido e exigindo que ela realize mais atividades do que o acordado previamente. De acordo com a PEC, os direitos obtidos em 2013 valem também para diaristas, observando-se as especificidades da profissão.
Para a presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Creuza Oliveira, ainda há resistência por parte de certos patrões em aceitar as conquistas de direitos. Ela, que esteve no local entregando panfletos e falando com outras mulheres, veio a Porto Alegre participar do seminário “Os direitos das Trabalhadoras Domésticas: Avanços e Desafios”, no auditório do Ministério da Fazenda em Porto Alegre, realizado nesta segunda-feira (26). “É importante que os patrões deem valor para a pessoa que está dando condições deles chegarem em casa e estarem com tudo limpo, organizado, os filhos com o dever de casa pronto. Tem gente que tem uma trabalhadora na sua casa há 20 anos e dispensa para não ter que pagar R$ 72 de FGTS”, lamenta.
Baiana, Creuza nasceu no interior, onde viveu até ter pouco menos de 10 anos, quando foi para Salvador morar com uma família que prometeu que iria “criá-la”. Na realidade, a menina parou de ir à escola e ficou morando na casa dos patrões, trabalhando como doméstica desde criança. Só conseguiu completar sua alfabetização aos 16 anos. Como ela, muitas outras crianças e adolescentes eram levadas para trabalhar ainda menores de idade, por patrões que consideravam que assim conseguiriam “moldá-las”.
Creuza estima que, das mais de 8 milhões de trabalhadoras domésticas existentes no Brasil, apenas 1 milhão estão cadastradas e regularizadas. Ela percebe essa defasagem como uma resistência por parte de certos patrões. “Tem empregadores que dizem que é muito caro. Olha, para quem recebe um salário mínimo, o FGTS é R$ 72, é 8% do salário. Não é nada absurdo. Algumas profissionais estão sendo demitidas, e isso parece ser uma espécie de punição pelos direitos alcançados. Porque a sociedade sempre viu o trabalhador doméstico dentro da lógica da Casa Grande e Senzala, isso é pensamento da época da escravidão”, afirma, acrescentando que espera que com o tempo, a aceitação cresça e a regulamentação seja generalizada.
A categoria é majoritariamente formada por mulheres negras, conforme aponta Creuza, as quais muitas vezes são chefes de família, por isso as trabalhadoras também lutam por creches públicas e escolas em tempo integral. “Nossa luta é por dignidade. Essas mulheres saem para cuidar dos filhos dos patrões e deixam seus próprios filhos sozinhos em casa. É uma pessoa que está dando condições de o patrão trabalhar, uma profissão que tem um valor social muito grande”, destaca. A luta das trabalhadoras começou ainda na década de 1930, mas as conquistas demoraram a chegar, relatou ela.
Atualmente, elas reivindicam que o Brasil assine a Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que estabelece uma série de recomendações a serem cumpridas por quem emprega trabalhadores domésticos. “É uma categoria que trabalha no âmbito privado, que ninguém ouve o que acontece, ninguém vê os assédios morais e sexuais, as violências, a exploração, as acusações falsas. Porque se some alguma coisa da casa do patrão, a primeira a ser acusada é a doméstica”, destaca Creuza.
Até 30% da categoria já está formalizada ou em processo de formalização para conseguir obter todos os direitos. Quando não formalizadas, as trabalhadoras ganham cerca de 80% do valor do salário mínimo mas, quando acontece a formalização, a média é de 120% do salário mínimo.
Região Metropolitana de Porto Alegre
Segundo dados divulgados nesta segunda-feira (25) pela Federação Estadual de Economia (FEE) e pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos), houve um aumento do emprego doméstico com carteira assinada em Porto Alegre e Região Metropolitana no ano de 2015. Há um total de 88 mil trabalhadores com ou sem carteira assinada, dos quais 96% são mulheres. Destas, a grande maioria são negras, representando 79,2% do total da categoria na região.
Além disso, chama atenção também a idade das domésticas: 77,2% têm 40 anos ou mais, o que é reflexo do decreto que proíbe o trabalho infantil e do fato de, na maioria dos casos, elas permaneceram no emprego por muitos anos. Em 2015 houve um aumento de mais 2 mil vagas ocupadas na comparação com 2014, o qual interrompe uma tendência de declínio observada desde 2008.
Fonte: Sul21