OPINIÃO | “Reforma” Tributária e o espírito de Tiradentes

Imagem: Cândido Portinari

Em mais de três décadas de avanço na ruína da sociedade industrial, a situação dos trabalhadores foi sendo modificada radicalmente no Brasil. Em relação ao mundo, por exemplo, a economia nacional perdeu significativa participação relativa, respondendo, em 2020, por apenas 1,6% do PIB global, quando em 1980 era de 3,2%.

Diante da expansão média do PIB per capita abaixo de 0,8% ao ano entre 1980 e 2020, a ocupação gerada internamente se mostrou insuficiente para atender a cerca de 1,3 milhão de brasileiros que anualmente chegaram ao mercado de trabalho. A consequência direta disso foi tanto o surgimento de mais de 300 mil desempregados por ano como a redução dos ocupados em relação ao total da população.

Desde 1990, com o ingresso passivo e subordinado do Brasil à globalização, o curso da sociedade industrial iniciada pela Revolução de 1930 foi interrompido, afetando profundamente a situação do mundo do trabalho. Em 1980, por exemplo, o país detinha 35% do conjunto dos brasileiros ocupados, ao passo que em 2020 conseguiu oferecer emprego para apenas 23% do total da população.

Enquanto um pouco mais de 1% da população de 1980 se encontrava na condição de procura por trabalho, no ano de 2020, a economia brasileira registrou quase 16% de todos os brasileiros em busca de empregos, sem ser, todavia, atendidos. Essa situação não se apresentou ainda mais dramática devido ao papel de gestão da força de trabalho sobrante desempenhada por governos – em maior ou menor medida – após a Constituição Federal de 1988.

Com isso, o Brasil atingiu, em 2020, cerca de 40% da totalidade da população dependendo de alguma forma de transferência de renda pública para poder sobreviver. A integralização parcial ou total de renda pública aos brasileiros não alcançava a 3% do conjunto da população beneficiada por políticas de transferência de renda governamental no ano de 1980.

Pelo lado do braço social do Estado houve significativo avanço em termos de garantia à parcela crescente da população de algum tipo de provimento de rendimento vinculado ao orçamento público (seguro-desemprego, previdência e assistência social, bolsa família, auxílio emergencial, entre outros). Dessa forma, a incapacidade do capitalismo em declínio de gerar emprego e renda à classe trabalhadora terminou sendo compensada parcialmente por importante atuação social gestora estatal.

Por outro lado, o braço policial do Estado também se fortaleceu e se manteve ativo na gestão da força de trabalho sobrante no país. A ação estatal se mostrou intensa sobre a população excedente às necessidades do contido processo de acumulação de capital, seja pelo aprisionamento crescente, seja pela violência letal contra uma parcela de brasileiros, sobretudo pobres e jovens não brancos.

Se contabilizar a quantidade oficial do total de homicídios, o Brasil acumulou, nos últimos 40 anos, o somatório de 1,6 milhão de mortes violentas. No ano de 2020, por exemplo, o país registrou oficialmente o número de 50 mil homicídios ante os 13,9 mil aferidos em 1980.

No que diz respeito ao aprisionamento, a expansão foi ainda mais intensa em relação à população sobrante do conjunto dos empregos ausentes. No ano de 1990, o Brasil possuía 90 mil presos, ao passo que em 2020 alcançou a totalidade de 887 mil pessoas, a terceira maior população carcerária do mundo.

Toda essa ampliação na atuação do Estado social e policial na gestão da força de trabalho sobrante exigiu importante elevação no gasto público. No ano de 2020, o total da despesa agregada na esfera pública correspondeu a 47% do PIB, enquanto que em 1980 representava 31% do PIB.

O aumento do gasto público frente à estagnação do PIB per capita terminou sendo financiado pela ampliação da carga tributária, emissão monetária e endividamento público. No ano de 2020, por exemplo, a carga tributária bruta respondeu por 2/3 do financiamento do total da despesa pública, ao passo que em 1980 cobria mais de 4/5 dos gastos agregados do Estado.

A forma de financiamento escolhida pelos governos do período posterior à aprovação da Constituição Federal de 1988 demonstrou ser daninha à base da pirâmide social e benéfica ao andar de cima da sociedade brasileira. Isso porque o aumento da carga tributária transcorreu simultaneamente através do alívio de impostos, taxas e contribuições para ricos, poderosos e privilegiados e maior sufoco justamente para os pobres, tendo em vista a regressividade do sistema tributário nacional.

A alíquota máxima do imposto de renda caiu de 50% para 25% no governo Sarney (1985-1990) e os lucros e dividendos foram isentos a partir de 1995, logo no início do primeiro mandato de presidente FHC (1995-2002). Em contrapartida, a ampliação das taxas, contribuições e impostos, sobretudo para o andar de baixo da sociedade, permitiu que a carga tributária bruta aumentasse 33% em relação ao PIB entre os anos de 1980 e 2020.

Do mesmo modo, o financiamento de parte crescente da despesa pública não coberta pela arrecadação tributária através do endividamento permitiu justamente aos endinheirados (ricos, poderosos e privilegiados) a ampliação financeira de suas fortunas. Diante da persistência das altas taxas reais de juros, os governos passaram a transferir parcelas significativas do próprio orçamento público para remunerar os detentores de títulos públicos, promovendo o rentismo que valoriza o estoque da riqueza velha do capitalismo brasileiro.

Assim, o distributivismo proudhonista se pronunciou concretamente, pois praticado em plena economia cujo nível de produção por habitante permaneceu praticamente estancado no tempo. Diante do declínio capitalista no Brasil, a sustentação do financiamento da repartição de renda pública – sem a expansão necessária da riqueza nova – exigiu do Estado o avanço sobre o rendimento dos mais pobres e dos segmentos de renda intermediária, o que fez reacender o espírito de Tiradentes questionador da derrama tributária que nos dias atuais segue excluindo ricos, poderosos e privilegiados.

A proposta de “reforma tributária” do governo Bolsonaro é um bom exemplo disso. Os ricos se safam, mais uma vez. O maior ônus da elevação de impostos, taxas e contribuições se direciona às vítimas de sempre. Até quando?

Marcio Pochmann é economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004. Concorreu duas vezes a prefeitura de Campinas-SP (2012 e 2016). Publicou dezenas de livros sobre Economia, sendo agraciado três vezes com o Prêmio Jabuti.

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