O precariado e a luta de classes

Guy Standing [*]
Tradução: João Paulo Moreira

Resumo
A economia mundial encontra-se em plena Transformação Global, produzindo uma nova estrutura de classes a nível global. Está a surgir uma nova classe – o precariado –, que se caracteriza por incerteza e insegurança crônicas. Embora o precariado esteja ainda em constituição, com divisões no seu seio, os seus elementos encontram-se unidos na rejeição das velhas tradições políticas dominantes. Para se tornar uma classe transformadora, no entanto, o precariado necessita de ultrapassar o estádio de rebelião primária manifestado em 2011 e de se constituir como uma classe-para-si, capaz de se assumir como força de mudança. Isto implica uma luta pela redistribuição dos bens fundamentais para uma vida boa numa sociedade boa no século XXI – não os “meios de produção”, mas a segurança socioeconômica, o controlo sobre o tempo, espaços de qualidade, conhecimento (ou instrução), saber financeiro e capital financeiro.

Sumário
Definição de precariado
Os três tipos de precariado
O precariado enquanto classe transformadora
A luta pela redistribuição
Referências bibliográficas


Toda a formação social produz a sua própria estrutura de classes, mesmo quando esta se vem acrescentar a estruturas anteriores. Encontramo-nos hoje em plena Transformação Global, análoga à Grande Transformação de Karl Polanyi (Polanyi, [1944] 2001). Neste caso, contudo, estamos a viver a construção dolorosa de um sistema de mercado global, ao passo que aquilo sobre que Polanyi escreveu tinha a ver com a criação de uma economia de mercado nacional e com as instituições que permitem “incrustar” a economia na sociedade.

Enquanto no início do século XX o proletariado – núcleo, então em expansão, da classe operária – estava na vanguarda das transformações sociopolíticas, a partir da década de 1980 ele deixou de ter a dimensão, a força e a perspectiva progressista necessárias ao desempenho desse papel. Foi, durante muitas décadas, uma força positiva, mas chegou a uma situação de impasse em resultado do seu laborismo intrínseco, ao querer o maior número de pessoas possível com “empregos” e ao associar direitos sociais e econômicos à prestação de trabalho.

Em meados do século xx, o capital, os sindicatos e o mundo do trabalho em geral, bem como os partidos trabalhistas e social-democratas estiveram, todos eles, de acordo quanto à criação de uma sociedade e de um Estado-providência inspirados no laborismo, assentes numa maioria proletarizada, apostados no trabalho estável e em que houvesse uma ligação implícita entre trabalho e benefícios. Para o proletário, o grande objetivo era ter trabalho “decente” e melhor, não a fuga ao trabalho. A estrutura de classes correspondente a tal sistema era relativamente fácil de descrever, com uma burguesia – empregadores, gestores e quadros superiores assalariados – oposta ao proletariado e formando assim, no seu conjunto, a espinha dorsal da sociedade.

Hoje em dia ganha forma, a nível global, uma estrutura de classes profundamente diferente. Em resumo, e tal como a descrevo noutro local (Standing, 2009, 2011), ela é constituída por sete grupos, nem todos constituindo propriamente classes, quer na aceção marxista, quer no sentido weberiano do termo. Na sua maior parte possuem claras relações de produção, de distribuição, relações com o Estado e ainda uma clara consciência moral.

Abaixo dos grupos que podemos designar como classes existe uma subclasse, um lumpen-precariado constituído por gente que se arrasta, acabrunhada, pelas ruas, morrendo na miséria. Atendendo a que estão, de facto, excluídos da sociedade, a que não têm capacidade de ação ou qualquer papel ativo no sistema econômico para além de amedrontarem quem nele se encontra, podemos deixa-los de lado, não obstante alguns dos seus elementos poderem eventualmente ser ativados em alturas de protesto popular.

Embora as classes não se definam unicamente pelo rendimento, é possível agrupá-las por ordem decrescente de rendimento médio. No topo da estrutura há uma plutocracia – um punhado de super-cidadãos detentores de uma vasta riqueza, na sua maior parte obtida ilicitamente, e gozando de um enorme poder informal, parcialmente associado ao capital financeiro.

Vivem desvinculados do Estado-nação, muitas vezes com passaportes de conveniência de vários países. Muito do poder que detêm é um poder de manipulação, seja através de agentes, do financiamento de políticos e de partidos ou da ameaça de tirar o seu dinheiro do país caso os governos não lhes façam a vontade.

Abaixo da plutocracia encontra-se uma elite com a qual aquela tem muito em comum, embora os membros dessa elite possuam nacionalidade definida. Os dois grupos funcionam como classe dominante efetiva, quase hegemônica no seu presente estatuto. Eles corporizam o Estado neoliberal, manipulando os políticos e os meios de comunicação, enquanto, por outro lado, as agências financeiras cuidam para que as regras se lhes mantenham favoráveis.

Logo abaixo está o salariado, grupo com segurança de emprego a longo prazo, salários elevados e amplas regalias ao nível da relação empresarial. Os seus membros ocupam as burocracias do Estado e os escalões mais elevados das grandes companhias. A chave para se entender a sua posição de classe está em que vão buscar ao capital, sob a forma de ações, uma fatia cada vez maior dos rendimentos e da sua segurança. Tal significa que os seus proventos poderão aumentar se os salários forem esmagados, caso isso, por sua vez, signifique que sobe a participação nos lucros e, com ela, o valor das suas remunerações. Esta é uma das razões pelas quais poderá ser enganador juntar numa única classe o salariado e os que lhe ficam por baixo.

Com a privatização do setor público e com o emprego a ser terceirizado e atirado para offshores tanto por empresas como por agências governamentais, o salariado tem vindo a diminuir e muitos dos seus membros receiam vir a cair no precariado, sobre o qual nos deteremos já adiante. O salariado vai continuar a diminuir na maioria dos países, mas mesmo assim continuará a existir, sendo uma espécie de “classe média” [1]. Uma grande parte dos seus membros nutre, claramente, a esperança de ascender à elite ou transitar para o grupo seguinte.

Chamei a este grupo o dos proficians. Em número cada vez maior, ganham a vida como consultores, “empresários” independentes e em atividades afins. Auferem rendimentos elevados, mas vivem no limite e numa constante exposição a riscos morais, infringindo muitas vezes a lei sem quaisquer reservas. Além de crescerem em número, é também cada vez maior a sua influência no discurso político e no imaginário popular. Seria estulto afirmar que integram uma classe trabalhadora una, uma vez que são, fundamentalmente, empresários que a si mesmos se vendem, ou seja, constituem uma força de trabalho verdadeiramente mercadorizada.

Abaixo, em termos de rendimento médio, situa-se o núcleo do velho proletariado, em rápido processo de retração em todo o mundo. Aquilo que dele resta irá perdurar, mas falta-lhe a força para fazer avançar ou impor a sua agenda no domínio político, ou sequer para assustar o capital com reivindicações. Os Estados-providência e os regimes dos chamados “direitos laborais” foram feitos para eles, mas não para os que se situam mais abaixo na estrutura de classes.

Este facto tem implicações inusitadas para a natureza da luta de classes durante o período que se avizinha. Ao longo do século XX o proletariado conheceu uma gradual desmercadorização do trabalho, devido à circunstância de uma parte dos seus rendimentos consistir em ganhos de capital em remunerações não salariais. A materialização mais importante deste fenômeno são os gigantescos fundos de pensões que premeiam os trabalhadores proletarizados pelos longos anos de “serviço” durante os quais investiram em mercados de capitais para obter fundos. O resultado disso é que se torna muito difícil imaginar o proletariado a ter um papel “revolucionário” ou transformador, atendendo ao modo como os seus representantes, e nomeadamente os sindicatos, cimentaram os seus interesses no interior do próprio capitalismo.

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Notas

[*] Leciona Development Studies na School of Oriental and African Studies (SOAS), Universidade de Londres. Ex-­diretor do Socio-­Economic Security Programme na Organização Internacional do Trabalho (OIT). As suas publicações recentes incluem A Precariat Charter: From Denizens to Citizens (Bloomsbury, 2014), The Precariat: The New Dangerous Class (Bloomsbury, 2011), and Work after Globalization: Building Occupational Citizenship (Elgar, 2009). [email protected]

[1] O salariado ocupa uma posição de classe contraditória, no sentido que Erik Olin-Wright (1978) dá à expressão. No entanto, considero que hoje em dia ele não faz, propriamente, parte de uma classe trabalhadora, sendo claro que está mais do lado do capital.

Fonte
Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 103, p. 9-24, maio 2014.

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