Dois relatórios divulgados na semana passada, um pelo Conselho da Europa e outro pela Federação Internacional da Cruz Vermelha, destacam os efeitos devastadores das medidas de austeridade, principal ferramenta usada no combate à crise econômica e financeira iniciada em 2008, sobre o tecido social europeu.
O documento mais abrangente é o da Cruz Vermelha, baseado numa pesquisa feita pelos escritórios da organização nos países europeus. A entidade lembra que, logo nos primeiros sinais da turbulência, vaticinou que o foco na estabilização macroeconômica estava obscurecendo as consequências humanitárias da crise. Ainda segundo a organização, cinco anos depois está claro que os mais vulneráveis são os mais atingidos e que as pessoas nunca antes afetadas por abalos financeiros também estão sofrendo as consequências.
A entidade afirma que a Europa está diante de uma “iminente crise humanitária”, pois os pobres estão ficando mais pobres, há mais gente cuja renda está abaixo da linha da pobreza e a desigualdade está aumentando. Segundo a entidade, as “consequências a longo prazo” da crise ainda estão por vir, uma vez que a questão do desemprego na Europa é uma “bomba-relógio”. Em um quarto dos 52 países pesquisados, o nível de desemprego dos jovens é classificado como “catastrófico”, variando de um terço desta população até 60% dos jovens de um país. Entre os mais velhos, a situação também é problemática. Em 2008, havia 2,8 milhões de desempregados entre 50 e 64 anos nos 28 países da União Europeia. Em 2012, esse número estava em 4,6 milhões.
Essa situação, afirma a Cruz Vermelha, tem feito a entidade mobilizar esforços na Europa. Durante o ano de 2012, 3,5 milhões de europeus receberam doações de comida, um aumento de 75% com relação a 2009. Ainda segundo a organização humanitária, “centenas de milhares estão sendo assistidos com aconselhamento, ajuda financeira ou material ou apoio psicológico”. A organização afirma que os efeitos da crise serão sentidos “por décadas”, mesmo que haja uma recuperação do crescimento econômico. Na Letônia, país báltico que deixou a crise oficialmente, mais de 140 mil pessoas estão recebendo doações de comida.
O relatório da Cruz Vermelha, intitulado Pense diferente – impactos humanitários da crise econômica na Europa, desafia os europeus a pensarem se conseguiram compreender o que os atingiu e se estão preparados para lidar com as consequências da crise. A organização afirma que a turbulência tem atraído imigrantes para países menos afetados ou economias em crescimento, mas lembra que, após 12 meses metade deles continua desempregada e que têm sido recebidos com “posturas mais duras” pelos governos e sociedades que os recebem. Para a organização, a xenofobia é uma preocupação crescente. Há milhares de pessoas morando a céu aberto ou em locais improvisados, afirma a Cruz Vermelha. Na Europa oriental, crescem os “assentamentos temporários” devido ao corte de gastos sociais dos governos.
A Cruz Vermelha lembra que os efeitos da austeridade têm sido sentidos não apenas nos países mais pobres. Na França, desde 2009, 350 mil pessoas cruzaram para baixo a linha da pobreza. Na Alemanha, um relatório da Fundação Bertelsmann mostrou que, entre 1997 e 2012, 5,5 milhões de pessoas deixaram a classe média para se tornarem “trabalhadores de baixa renda”, enquanto 500 mil pessoas entraram para o grupo dos mais ricos.
Espanha
O relatório do Conselho da Europa, que reúne os chefes de Estado ou governo da União Europeia, vai na mesma linha do estudo da Cruz Vermelha, mas é focado na Espanha. Assinado por Nils Muižnieks, comissário para Direitos Humanos do conselho, o relatório afirma que “cortes em orçamentos sociais, de saúde, educacionais levaram a um preocupante aumento na pobreza das famílias”.
De acordo com Muižnieks, os cortes significativos na educação espanhola nos últimos três anos estão minando a oportunidade de igualdade das crianças ao tornar mais difícil o acesso ao ensino de qualidade para as que têm dificuldades específicas ou desvantagens para acessar o sistema educacional. “A crescente pobreza infantil, má nutrição e moradia inadequada são assuntos de grande preocupação por seu potencial devastador em longo prazo sobre as crianças e o país”, afirmou o comissário. “As autoridades espanholas devem implementar estratégias efetivas para resolver esses problemas relacionados à pobreza e proteger os direitos socioeconômicos”.
“A austeridade está morta. Vida longa à austeridade”
Em junho, ao fazer uma avaliação da ajuda à Grécia, o Fundo Monetário Internacional admitiu que não imaginava os impactos negativos que as medidas de austeridade impostas ao país europeu teriam. Em um relatório conjunto com os outros dois integrantes da chamada “troika” – o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia – o FMI admitiu que “a confiança do mercado não foi recuperada, o sistema bancário perdeu 30% de seus depósitos e a economia sofreu uma recessão muito mais profunda que o esperado, com excepcionalmente alto nível de desemprego”.
O reconhecimento por parte do FMI foi mais um dos diversos, porém tímidos, passos da entidade para se distanciar da austeridade. Como já sabiam os países da Ásia e da América Latina, o aperto pode ajudar a minimizar crises, mas tem um impacto social negativo. A principal medida do receituário do FMI, entretanto, continua em voga.
Em abril, o FMI fez duras críticas à austeridade imposta pelo ministro responsável pela economia e finanças do Reino Unido, George Osborne. Naquele mês, o fundo recomendou que o governo britânico pensasse em um plano B para a economia e buscasse reduzir seu déficit de forma mais lenta. Na terça-feira, 8, em novo relatório sobre o Reino Unido, o FMI abandonou as críticas. O aumento do investimento por parte do governo deixou de ser uma “recomendação” para ser uma “possibilidade”.
A mudança se deu não por conta de questões sociais. Em abril, a preocupação do FMI era com a capacidade de investimento do setor privado diante das medidas. Agora, como essa preocupação desapareceu, o Fundo deixou de ver a austeridade com tanta preocupação.
Fonte: Carta Capital/ DMT