Jurema Brites [*]
Felícia Picanço [**]
O trabalho doméstico remunerado no Brasil reproduz um traço perverso e ambíguo comum a outras experiências nacionais: ao mesmo tempo em que absorve e retém as mulheres, em especial, as mais pobres, negras e menos escolarizadas, é, também, fundamental para a liberação de outras mulheres para o ingresso no mercado de trabalho.
Enquanto experiência “quase universal”, o quadro é explicado pela desvalorização das tarefas reprodutivas do âmbito doméstico e do trabalho manual; elevada adesão aos papéis tradicionais de gênero, que responsabilizam as mulheres pela execução dos trabalhos de cuidado e reprodução social da família; escassos aparelhos e políticas públicas de apoio à conciliação entre família e trabalho remunerado (Hirata e Kergoat, 2008; Sorj, Fontes e Machado, 2007; dentre outras). E, no que há de específico da experiência brasileira, ressalta-se a persistência das consequências de uma sociedade colonial escravagista e hierarquizada, e da desigualdade social, econômica e educacional, resultado, e resultante, da discriminação racial, de gênero e classe (Mori, Bernardino-Costa & Fleischer, 2011).
A primeira regulamentação do trabalho doméstico no Brasil se deu em 1972 com a Lei nº 5.859. Nela, ficou definida a especificidade do trabalho doméstico frente ao trabalho em geral – exercido nas unidades domiciliares e sem geração de lucro para o empregador, portanto @s trabalhador@s doméstic@s [1] ficaram sujeit@s a regimes de direitos distintos.
No âmbito legal, perdurou por muito tempo uma visão que mesmo na academia era difícil de superar: a noção de que o trabalho doméstico era improdutivo. No âmbito da produção acadêmica feminista, o debate trouxe uma enorme contribuição ao definir que não se trata de atividades produtivas, nem improdutivas, mas sim reprodutivas – localizando-se no centro da existência, sem as quais os seres humanos não podem viver (Dalla-Costa, 1975). Estudos de feministas marxistas questionaram até mesmo a teoria do valor e hoje demonstram que o trabalho doméstico não pago mascara uma importante parte da mais-valia produzida (Gutiérrez-Rodriguez, 2010; Vega, 2009).
A atenção dos movimentos sociais prestada à profissão, o engajamento de atores políticos e as análises acadêmicas feministas (Safioti, 1976; Kofes, 1991; Castro, 1993; Ávila, 2009) vêm produzindo mudanças fundamentais desde 1972. O resultado é que, mesmo que tardiamente, em 2013, a legislação foi alterada de forma mais incisiva. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) sobre o trabalho doméstico, implementada em março de 2013, aproximou os direitos d@s trabalhador@s doméstic@s aos direitos dos trabalhadores regidos pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). @s empregad@s doméstic@s passaram a ter jornada de trabalho fixada em 44 horas semanais em regime de trabalho diurno, com direito ao pagamento de adicional noturno e de hora-extra, horário determinado para as refeições e direito a contrato de trabalho.
Ainda tramitam outras mudanças, como o pagamento de FGTS. No entanto, a mudança na constituição ainda não foi plenamente regulamentada. Muitas dúvidas e disputas políticas ainda estão em andamento, entre elas, a mais marcante é a indefinição dos direitos das diaristas, trabalho que no Brasil não é reconhecido por horas, e sim por “vínculos contínuos de contrato”. Como não se define o que seja contínuo, elas ainda permanecem fragilizadas neste processo. Ainda que muitas questões ainda não estejam contempladas, novas realidades vêm despontando, como o recente acordo entre empregad@s e patro@s em São Paulo, que estipula piso para diferentes ocupações do serviço doméstico.
O trabalho doméstico remunerado (e não remunerado também) é, pois, uma zona de interseção entre classe, gênero, raça e trabalho, e as pesquisas acadêmicas e dos movimentos de mulheres têm lançado esforços para compreender as diversas dimensões do fenômeno. Enquanto a introdução de novas formas de mensuração das pesquisas quantitativas foi determinante para captar a diversificação da configuração do fenômeno, as pesquisas qualitativas têm procurado desvelar as lógicas das interações que envolvem o trabalho doméstico no Brasil.
O objetivo deste artigo é explorar o trabalho doméstico remunerado em números, tensões e contradições a partir de três fontes de dados: a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), realizada anualmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); o survey Família e Papéis de Gênero, fruto da filiação do Brasil ao International Social Survey Programme (ISSP), realizado em 2002; e uma etnografia realizada com patroas e empregadas em 2007.
Os dados das PNADs buscam caracterizar @s trabalhador@s doméstic@s, em especial as mulheres, identificar mudanças e apontar permanências, o que permite dizer que, embora ainda responda por uma grande parcela da ocupação feminina, ao longo da última década, o trabalho doméstico remunerado reduziu sua participação percentual entre a população feminina ocupada, assim como se observa um envelhecimento do grupo e melhores níveis educacionais. Mas ainda é majoritariamente um destino das mulheres negras e com baixa escolaridade e resistente a regulamentação, seja pelo baixo percentual de trabalhadores com carteira, seja pelo baixo pagamento de previdência social.
Os dados da pesquisa sobre Família e papéis de gênero, por sua vez, oferecem a nós percepções e opiniões acerca dos papéis de gênero das mulheres e homens cujas casas têm empregadas domésticas, em comparação com aqueles cujas casas não têm. Além disso, identificam quais são as tarefas realizadas por mulheres, homens e pelas trabalhadoras domésticas, uma forma de quantificar a distribuição do trabalho doméstico entre os membros da casa. Através dessa pesquisa, estima-se que 7,4% dos domicílios tenham empregadas; e, em geral, são lares de classe média e alta, cujas tarefas de cuidados com a casa e filhos são distribuídas de acordo com o lugar social do seu executor.
Shelle Colen (1995) nomeou de “reprodução estratificada” um sistema semelhante que identificou em suas pesquisas sobre babás em Nova York. Nesse sistema, as tarefas reprodutivas são distribuídas em termos de hierarquias de classe, raça, grupos étnicos e gênero. A pesquisa etnográfica busca mostrar, então, que esta reprodução estratificada é mantida também por um sistema de “ambiguidade afetiva” entre patro@ s e trabalhadoras, sobretudo entre as crianças e suas empregadas (Goldstein, 2000; Brites, 2007). O que permite falar que se trata de um amplo processo de produção e reprodução de desigualdades baseado em trocas afetivas, simbólicas e materiais, aqui chamado de complementaridade estratificada.
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Notas
[*] É professora do Departamento de Ciências Sociais e Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria, desenvolve pesquisas na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia Urbana, atuando principalmente nos seguintes temas: grupos populares, família, gênero e trabalho doméstico.
[**] É professora do Departamento de Sociologia e da Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, desenvolve pesquisas na área de desigualdades sociais por gênero, raça e na juventude, em especial sobre educação e trabalho.
[1] Neste texto quando nos referirmos a ambos os sexos desta categoria, utilizaremos a linguagem generada do @.
Fonte
Revista Latino-Americana de Estudos do Trabalho, ano 19, n. 31, p. 131-158, 2014.