Em entrevista concedida à jornalista Samantha Klein do Jornal da Universidade, na edição de dezembro de 2018, a advogada Marilinda Marques Fernandes analisa a conjuntura sócio-econômica-política de Portugal no atual momento. A qual traz em si a possibilidade de novos caminhos para além dos ditames do mercado e dos imperativos do ajuste fiscal, os quais sempre implicam na perda de direitos dos trabalhadores e no empobrecimento das classes mais desfavorecidas. Neste sentido, ilustra os avanços sociais inclusivos das políticas levadas a cabo com a Gerigonça:
“Então, meu país se coloca como uma esperança porque se reagirmos e lutarmos por políticas sociais é possível mudar o cenário de austericídio. Conseguimos estabelecer imposto sobre as fortunas. Todas as heranças a partir de 600 mil euros são tributadas. Estamos tentando acabar com os contratos temporários semelhantes aos que vocês têm aqui quanto a contratação de professores em escolas públicas; agora há prazo para terminar com esse tipo de contrato nas áreas do ensino e da saúde em Portugal. Também estamos trabalhando sobre essa questão do inquilinato e a exploração dos imóveis com aplicativos de ocupação por turistas através do Airbnb, por exemplo”.
Confira a entrevista na íntegra:
INTERNACIONAL: O caminho é o desvio da austeridade
Economia e direitos – A conjuntura política de Portugal poderia ser tomada como exemplo para o Brasil, considera portuguesa radicada no Brasil
Samantha Klein
A advogada especializada em Previdência, Marilinda Fernandes, pode dizer que conhece bem o Brasil e sua conjuntura. Vivendo há 34 anos no país, já viu muitos governos e diferentes planos econômicos serem implementados nessa terra que já foi colônia dos portugueses. Dos planos Verão e Cruzado ao bem-sucedido Plano Real, do neoliberalismo implementado pelo ex-presidente Fernando Collor de Melo ao social-democrata Luiz Inácio Lula da Silva, Marilinda acompanha as mudanças em direitos e políticas sociais. Ao mesmo tempo, anarcosindicalista desde a juventude, a advogada acompanha todas as movimentações da política de seu país. Portuguesa, Marilinda acompanhou o fim da era salazarista e a Revolução dos Cravos, o declínio econômico depois de uma época de ouro para os cidadãos, a intervenção do FMI e União Europeia após a grande crise de 2008 e a formação da Geringonça.
Por que Portugal mergulhou na crise a partir de 2008 e como buscou sair do fosso econômico?
As origens dos problemas econômicos de Portugal estão em sua gênese. Desde a política de colonizações e expansões, com a utilização do ouro para construir igrejas e manter uma pequena elite, até a política de Salazar. O salazarismo impediu a industrialização de Portugal porque ele pensava que as ideias comunistas floresciam nas fábricas e com isso nos manteve como um país agrário. Quando chegamos ao ano de 2011, depois da crise financeira de 2008, nos deparamos com a intervenção da fórmula da União Europeia para os países em crise econômica. Quem nos governava naquele período era o CDS – Partido Popular (de linha conservadora, inspirado na democracia cristã), com o Paulo Portas, o Pedro Santana Lopes, que vão aplicar a fórmula da Troika, constituída do Banco Central Europeu, FMI e União Europeia. Esse trio impôs a maior austeridade das últimas décadas, em que eles aplicavam o que agora vocês vão começar a aplicar com o novo governo e que já iniciou com Michel Temer.
Quais são os efeitos da política de austeridade sobre um país como Portugal?
Entre as ações da Troika, impuseram uma reforma trabalhista, precarizando as relações de trabalho ao máximo; a redução das aposentadorias, sendo realizado um verdadeiro confisco sobre todas as aposentadorias de quem ganhava mais de 600 euros, e novamente nosso povo volta à diáspora porque nossos jovens não têm onde trabalhar em Portugal. A nossa população está decrescendo porque os jovens não querem ter filhos, pois não conseguem ter casa onde morar e qualquer garantia sobre o futuro do trabalho. A maioria dos jovens formandos vive nas casas dos pais. Além disso, essa euforia turística tem agravado a vida de jovens e velhos, porque os inquilinos de cidades como Lisboa e Porto estão sendo despejados das residências em que vivem há décadas. Além disso, houve uma redução drástica nas políticas sociais e a quase paralisação das indústrias. Enfim, um desespero. E, nesse desespero, surge uma esperança nas eleições de 2015 – lembrando que quem ganhou as eleições foi o PSD e não a esquerda, só que, para ter a maioria na Assembleia da República, o Partido Socialista precisava fazer uma aliança com o Bloco de Esquerda, do qual sou simpatizante e milito, com o Partido Comunista e com os Verdes. Isso aconteceu e estamos vendo os resultados.
Como se deu esse acordo?
O Partido Socialista é igual ao Partido dos Trabalhadores que vocês têm aqui: somente para a classe média é que eles são considerados comunistas ou de esquerda. Esses dois partidos são centro-esquerda e não mais que isso, e olhe lá. Por que viemos chamar de Geringonça? Quando a proposta foi apresentada à União Europeia, os alemães apelidaram a coalizão pejorativamente assim, dizendo “isso não vai dar em nada”. E eles não queriam que desse em nada, porque a Grécia estava vivendo o mesmo processo de pauperização. Eles não queriam que a nova composição em Portugal desse certo, mas seguimos por uma via que foi diferente em dois aspectos em relação a dos gregos. Fizemos esse acordo não em cima de cargos e exigindo projetos de melhoria das condições da população. O Bloco de Esquerda garantiu apoio aos projetos que dessem melhoria de vida e acabassem com precariedade no serviço público, sem ocupar ministérios e secretarias. Nossos jovens agora pensam melhor antes de emigrar, o salário mínimo está melhor, os idosos estão mais bem acolhidos, sentimos de fato que há uma grande alteração na qualidade de vida dos cidadãos, apesar de ainda termos muito a melhorar. Ainda temos um milhão de pessoas pobres, elevado número de pessoas sem teto, temos um dos maiores índices de desempregados da União Europeia. Acho importante pensar nisso porque vocês, brasileiros, ficam endeusando meu país quando temos problemas semelhantes. O Brasil é o admirável mundo novo. As pessoas ficam surpresas quando tomam conhecimento de que um jovem ganha um salário de 800 euros e ainda é com recibos verdes, ou seja, com contratos precários. Neste ano, por exemplo, tivemos inúmeras greves.
O que faz com que você se entusiasme com a Geringonça?
O que me entusiasma, me dá esperanças, é que nesses quatro anos conseguimos melhorar e reverter em parte as políticas prejudiciais e retomar benefícios que tínhamos perdido. Os servidores públicos, por exemplo, passaram novamente a trabalhar 35 horas semanais. A Troika tinha instituído regime de 40 horas. Acabamos com o confisco das pensões, restabelecemos os feriados – até isso tinham nos retirado. Acredite, não tínhamos nem mais o direito ao ócio do feriado do Carnaval. Há uma perspectiva de inclusão das pessoas. Já aqui no Brasil, o que me causa perplexidade é que o próximo ministro da Fazenda quer implementar tudo aquilo que a Troika fez em Portugal. Então, meu país se coloca como uma esperança porque se reagirmos e lutarmos por políticas sociais é possível mudar o cenário de austericídio. Conseguimos estabelecer imposto sobre as fortunas. Todas as heranças a partir de 600 mil euros são tributadas. Estamos tentando acabar com os contratos temporários semelhantes aos que vocês têm aqui quanto a contratação de professores em escolas públicas; agora há prazo para terminar com esse tipo de contrato nas áreas do ensino e da saúde em Portugal. Também estamos trabalhando sobre essa questão do inquilinato e a exploração dos imóveis com aplicativos de ocupação por turistas através do Airbnb, por exemplo.
Que medidas são essas?
Na prática, a meta é evitar que as pessoas sejam simplesmente expulsas de suas residências. Os inquilinos têm a prioridade sobre a compra do imóvel em que vivem. Também aprovamos um projeto em que os bairros Mouraria, Graça e Bairro Alto não poderão receber turistas por quatro meses. Ou seja, os moradores não poderão alugar seus quartos pelo Airbnb. Porque elas deixam suas casas, vão para campings e alugam. Essa prática vem causando gentrificação e descaracterização da cidade. E mais, não somos somente nós a fazer isso. Outras cidades como Barcelona e Veneza já restringem. Em Veneza, há inclusive um controle do número de pessoas que ingressa no município. Claro, haverá quem diga que o turismo é essencial e o índice de crescimento do país se deve ao turismo, mas, se não houver regras, Lisboa será completamente descaracterizada, e em cinco anos ninguém mais vai querer visitar nossa cidade.
Em sua opinião e como defensora dos direitos do cidadão, qual é o caminho para a retomada do crescimento econômico?
Portugal foi um dos países que mais cresceu na União Europeia (segundo o Gabinete de Estatísticas da União Europeia, Portugal cresceu 2,1% em 2017, ficando acima da média dos demais países da Comunidade Europeia) com a retomada de direitos e políticas sociais sem nos tornar menos competitivos. Ao invés de decrescermos como vinha acontecendo com o austericídio, nós crescemos economicamente. Crescemos não somente por meio do turismo, mas criamos mais empregos, geramos renda, e com os empregos e renda gerou-se mais arrecadação de impostos, portanto um melhor orçamento. Além disso, houve incremento nos saldos de previdência porque não existe previdência sem contribuição. Sem emprego não tem como a previdência ir para frente, porque ela é alimentada pela contribuição dos trabalhadores e dos empresários. Não é retirando direitos, ampliando a idade de aposentadoria, reduzindo as despesas que vamos fazer com que a economia vá para frente. O único resultado desse tipo de política é aumentar o campo de investimento pró-capital financeiro, quer nacional quer internacional. É esses que engordam em detrimento de nosso povo. O indivíduo que elegeu Jair Bolsonaro já está à mercê do mercado financeiro. Se não se anuncia nada em relação à reforma da Previdência, o dólar já dispara, a Bolsa de Valores cai. Em lugar de um projeto que leve ao bem-estar do povo comandando o projeto de desenvolvimento econômico, o humor do mercado. Em Portugal, posso te dizer, rompemos com essa lógica chantagista.
Entrevista concedida ao Jornal da Universidade, no caderno Internacional da edição de dezembro de 2018, a jornalista Samantha Klein