Moradores do bairro Bom Jesus debatem impactos da Reforma da Previdência

No dia 1° de abril a Dra. Marilinda Marques Fernandes participou de roda de conversa sobre a reforma da Previdência, em atividade promovida pela pela Associação de Moradores do Bairro Bom Jesus, Bonsucesso Athlético Clube e Coletivo Cidade, junto ao auditor fiscal Josué Martins e a assistente social Léa M. Ferraro Biasi, como debatedores.

A primeira fala foi de Josué Martins, auditor Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, sobre as contas públicas maquiadas e falsas que justificam o desmonte da Previdência. Josué trouxe um material nacional produzido por mais de 50 auditores fiscais, patrocinados pelo Dieese e Andif, que afirma que a proposta de reforma da Previdência visa diminuir o gasto do Estado com a seguridade social. Para Josué, “o Estado tem que prover o bem-estar social. Contudo, o principal gasto público é com dívida”, como demonstra o gráfico no material que o auditor apresentou. De acordo com Josué, o gasto com a Previdência Social é metade dos gastos com dívida pública. “Quem ganha com a dívida são os rentistas, que compram títulos do governo, gerando uma financeirização da economia, que também é mundial, e esta é a lógica do capital que esgota recursos. No orçamento de 2017 a previsão é de que mais de 50% dos gastos públicos da união sejam com a dívida, cerca de 1,7 trilhão de reais.

Para Josué, a PEC 287 que institui teto para gastos públicos é de interesse do capital rentista. “A reforma da previdência terá como resultado a diminuição dos gastos sociais para aumento dos gastos com os rentistas, despesas financeiras”, afirma Josué. O sindicato dos auditores faz parte de grupo que luta pela Auditoria Cidadã da Dívida Pública, movimento nacional que busca compreender o gasto com a dívida, saber do que é composta, observando possíveis irregularidades, como pagamento sem justificativa. “Já existe auditoria em países como Equador e Grécia, e se revelou irregularidades nas dívidas”.

De acordo com Josué, o governo mente na justificativa da reforma porque o orçamento da Previdência se calcula com o da Saúde e o da Assistência Social, que são os três setores que correspondem a Seguridade Social, que ampara a população mais necessitada. “As nações centrais cuidaram para amenizar a miséria através de luta social no período do pós-guerra. No Brasil se lutou muito para conquistar e já está sendo desmanchado. Ano passado o governo ainda aprovou DRU de 30% para pagar juros e encargos da dívida.

Josué ainda comenta a tese de doutorado de 2005 de Denise Gentil, que mostra que o orçamento da Seguridade é superavitário. “O orçamento da Seguridade, a constituição federal de 1988 define, quem financia não é somente a contribuição da folha de salário de trabalhadores e pelos empregadores, o governo também contribui. Não há deficit. Quando é calculado o orçamento só da Previdência, sim, mas o da Seguridade como um todo é superavitário”.

Léa Biasi, assistente social e militante da Seguridade Social que esteve nas assembleias constituintes, falou como a assistência social não é reconhecida como um direito social nos Cras e Creas, ainda sendo visto como um favor. “Ninguém reivindica a política como um direito”, afirma Léa, relembrando a luta da constituição federal de 1988 “para se ter o estado de bem-estar social em que se conseguiu aprovar um sistema de Seguridade mínimo, comparado com outros países, com previdência saúde e assistência social, ainda que reduzido”. Léa comenta que na Constituição Federal os direitos sociais, como educação, lazer, cultura, habitação, transporte e saúde são para todos, mas Previdência é apenas para quem contribui, assim como assistência social é apenas para quem precisa, que esteja passando necessidade ou dificuldade, o que dificulta a população entendê-los como direitos”. Na Constituição de 1988 está previsto a política de assistência social como direito do cidadão e dever do Estado, afirma Léa, denunciando o não funcionamento das Cras, a política assistencial ainda utilizar um conceito de família conservador, e a falta de condições para um trabalho contínuo e permanente, parado no último ano em muitos municípios, dependendo de movimentos sociais que participam com apoio.

Um dos atendimentos da assistência social é o benefício de prestação continuada, direcionado para idosos e pessoas com deficiência, previsto na Constituição Federal e na LOAS. Este benefício é atualmente para quem tem mais de 65 anos de idade, mas com a PEC 287, será para maiores de 70 anos. A PEC desvinculará o benefício do salário mínimo e, para Léa, “com o aumento da idade parar aposentadoria as pessoas não vão poder se aposentar e vão cair no benefício de prestação continuada, que vai ser menos de um salário mínimo, e quase não serão concedidos pelos peritos, que consideram qualquer coisa como condição de trabalho, se valendo apenas de laudos médicos e não sociais, que explique a situação de vida do beneficiário”.

A Dra. Marilinda Marques Fernandes, advogada especialista em direito da seguridade social, contextualizou a situação do Brasil no plano internacional, principalmente na América do Sul, com reiteradas rupturas com o estado de direito, no Brasil, Paraguai, Venezuela. Na Argentina, a luta contra reformas parecidas com as que estão sendo impostos no país. Já em Portugal, com um governo de centro-esqueda, se está saindo do déficit e aumentando o salário mínimo e a circulação da economia.

Marilinda lembra a infeliz aprovação da terceirização irrestrita do trabalho no país, concretizada pela sanção do presidente, simbolicamente, na sexta à noite dia 31 de Março. Para Marilinda, “isso demonstra que não tivemos a capacidade de resistir à quebra do estado de direito, assim como quando foi aprovada a emenda constitucional 95, que congela gastos públicos por 20 anos. A PEC 287 se anuncia e é nossa responsabilidade lutar pelo estado de direito, mesmo sendo uma estrutura burguesa de Estado, para garantir a Seguridade como direito humano e garantir dignidade no momento de vulnerabilidade, na velhice, doença e morte, ou voltaremos para a barbárie da idade média”.

Para a advogada, “a PEC 287 vem servindo a um senhor. Esquecemos o conceito de classe no século 21. Todos se acham empreendedores e não se sentem trabalhadores. Até mesmo pequenos agricultores, e a falta de consciência de classe nos fragmenta a luta e é importante contornar isso para nos defendermos contra a reforma, que só aumenta a fatia dos detentores do capital, isentando os devedores, desonerando a grandes empresas e, assim, é mais fácil de nos derrotar”.

Marilinda afirma que “essa é reforma injusta por que visa o enxugamento de gastos excluindo e aumentando requisitos de acesso ao direito”. Com a PEC 287, só terá direito a aposentadoria quem tiver no mínimo 65 anos e se contribuir por, no mínimo, 25 anos. Para a advogada, “num mercado com 13 milhões de desempregados e com a terceirização, onde nenhum trabalhador terá estabilidade para contribuir durante tanto tempo, com restrito acesso ao mercado, será mais difícil se aposentar, principalmente para mulheres e, especialmente as do campo, deixando-se de levar em conta a função social da maternidade, o trabalho doméstico e o fato de que as mulheres terem os piores empregos no mercado, com mais rotatividade e são maioria no mercado informal”.

Marilinda aponta que o cálculo da aposentadoria também vai mudar e, para quem quiser se aposentar recebendo 100% do salário de benefício, de acordo com o cálculo, terá de contribuir por 49 anos. A aposentadoria por invalidez não será mais de 100% do salário de benefício. A pensão, assim como os benefícios de prestação continuada, serão desvinculados do salário mínimo. A pensão será no valor de 50% mais 10% do salário de benefício por dependente.

De acordo com Marilinda “grande contingente de cidadãos vai passar para assistência social. Serão milhares de excluídos na velhice e na doença”. Marilinda agradeceu o convite e a oportunidade de poder contribuir para a luta de resistência na defesa da seguridade social brasileira.

Abrindo o debate para falas dos moradores, Silvio comenta reportagem da Carta Capital falando de como o México teve reforma trabalhista e previdenciária e 1997 e como a maioria da população passou a contribuir para a previdência privada e, em função da instabilidade do mercado, muitos não conseguem sequer se aposentar. “77% dos idosos no México não contam com nenhum recurso financeiro. De acordo com a CEPAL, entre 2002 e 2014 o Brasil teve queda nos índices de pobreza, em função de políticas como o bolsa família, mas no México subiram, assim como a taxa de indigência”. Silvio lembra que trabalhadores terceirizados ganham, em média, 40% menos que empregados formalizados. Para ele é preciso cobrar “bancos como Santander, Itaú, Banco do Brasil e Bradesco, que devem 12 bilhões para a Previdência, e atacar o sistema rentista financeiro”.

De acordo com Leila vivemos um processo político que tem relação com as parcerias políticas feitas nas últimas gestões de governo federal e que enfraqueceu os espaços políticos de participação democrática, terminando em uma articulação conservadora crescente e contra a qual não se construiu a resistência necessária “e agora é que caiu a ficha. Essa reforma vai pegar todo mundo e a mídia coloca que é só para servidores públicos, para fragmentar a luta e desorganizar a classe e é preciso criar um processo de resistência nas comunidades. Os trabalhadores já acham que não vão se aposentar e é preciso dialogar com eles e conscientizar a população dessa crise, ir nas comunidades, chamar a greve geral com força, para lutar contra a retirada de direitos”.

Para Leo Monassa, músico e morador da região, “no último mês tem crescido debate sobre a reforma, mas, apesar disso, ainda há descrédito da população com a política. Por isto há um crescimento de ideias fascistas. A esquerda foi cooptada pelo parlamento burguês e ficou paralisada, e mesmo nos movimentos sociais não se fala mais de revolução. Conservadores como marcar Marcel Van Haten e Bolssonaro são compartilhados nas redes sociais. É preciso se movimentar na comunidade para combater esse senso comum conservador. As lutas estão segmentadas hoje na esquerda”.

Marilinda afirma que “quando se conquista o poder é para reforçar as instituições a serviço de uma política de igualdade e alterar as estruturas de distribuição de renda e, nos últimos anos, o Partido dos Trabalhadores não teve força nem estratégia para promover a devida redistribuição da riqueza e estamos pagando por isso. As commodities fizeram possível as políticas de erradicação da pobreza, mas, com a China parando de crescer, o Brasil perde essa fonte de renda. Ao mesmo tempo classe média nesse período ascendeu rápido demais e perdeu a pouca consciência de classe que tinha com os trabalhadores, por isso se engajando em lutas que são pobres politicamente, como a bandeira contra a corrupção, algo que não é uma luta de pauta política mas, sim, moral e que, sobretudo, não resolve o problema do Brasil que é, sem dúvida, a desigualdade.”

A advogada comenta que a maioria da população só busca saber seu direito previdenciário na hora que precisa reivindicá-lo e mesmo os sindicatos não discutem a previdência, um tema complexo e que está sempre mudando, relembrando que houve reformas em 1998, 2003, 2013 e em 2015, “sempre com argumento de que a Previdência é deficitária. Essa é claramente uma política de desmonte da Previdência. Não é possível que os jovens tenham interesse em contribuir para uma Previdência que pode ser sempre quebrada”. Além disso, comenta Marilinda, “há um estereótipo de que o trabalhador quer mamar na teta do governo, fazer filhos para receber auxílio financeiro. A lógica de achar que todos querem roubar a Previdência é um discurso do sistema, de que pobres querem se aproveitar de políticas para não trabalhar, e é preciso não reproduzi-lo.

Para Léa, comentando dos exemplos que vivenciou no bairro em que trabalhou como assistente social, onde não há mais Associação de Moradores, a dura realidade é que muitas mulheres engravidam para pode passar nove meses sem apanhar do marido. Para ela é preciso pensar em como dialogar com a população que necessita de assistência social para mobilizar contra a reforma, já que “as políticas de transferência de dinheiro para famílias são legítimas e acontecem em muitos países. O problema é não dirigir a crítica à crescente transferência de renda para banqueiros”.

De acordo com Josué “só a população organizada vai conquistar a distribuição da riqueza apropriada pelos detentores do capital, que utilizam aparelhos ideológicos como a mídia para reproduzir uma mentira, e a realidade não se apresenta como é, distorcida pelos meios de comunicação. Vivemos uma fase em que ideologias sexistas, racistas e fascistas afloram, como se viveu no momento pré 2Guerra Mundial, momento economicamente semelhante, de crise do capital, que tinha dificuldade de se reproduzir”.

Josué comenta também que “Marx aventava o momento em que o capital não iria mais incluir pessoas pela eliminação de postos de trabalho com a mecanização, eliminando massas da condição de trabalhadores, que passariam a pensar apenas com estômago, transformando a sociedade em uma selva. A financeirização leva o mundo a caminhar para crise mundial novamente, jogando as pessoas na miséria. Nossa economia centrada na exportação de minério, petróleo e agricultura primária, com pouca participação industrial, leva a pensar se há solução nesse sistema ou temos que achar alternativa a ele. Todos queremos ter um padrão de consumo e condições de vida baseados no centro, mas isso significa a extinção do meio ambiente. E não é necessário tudo isso para viver”, colocando exemplo de Cuba, com educação e saúde de ponta e universalizada.

Josué lembra que a soma entre votos brancos e nulos foi maior que a quantidade de votos conferidos ao prefeito atual de Porto Alegre, demonstrando que há uma crise de representatividade. “Não podemos nos abster, ou corremos o risco de eleger sujeitos como ele, mas o principal é que não podemos atuar somente na institucionalidade. É preciso representatividade, sem aliança de classes.

Renato Guimarães falou a respeito de como dialogar com a comunidade, “começando por uma base, compreendendo a realidade da região, para saber como informar e mobilizar na luta por fora da institucionalidade. Estamos retomando na comunidade a Associação de Moradores. Renato comenta que o tema desmonte da política pública é complexo, já que o trabalhador nem sabe que paga em impostos e, por consequência, a seguridade, educação e outros direitos.

De acordo com Agnaldo, o movimento social é criminalizado e são importantes espaços como esse (Associação de Moradores), de reconhecimento, para fazer com que a resistência tenha impacto. “Lula em 2018 não vai resolver, pois em seu governo diminuiu a pobreza mas não a desigualdade. Nos últimos anos houve desmobilização das bases pela institucionalização dos sindicatos e movimentos sociais. Precisamos de trabalho de base para ter como horizonte outra relação com a democracia”.

De acordo com Fonseca “muito do povo que esteve próximo de nós hoje está distante. Foi um erro achar que uma ferramenta partidária resolveria os problemas, é ilusão. E hoje estamos desacreditados, a droga e o pentecostalismo estão cada vez mais fortes nos bairros e nós temos que construir um outro futuro, recomeçando o trabalho de base”.

De acordo com Mário “em casa quando não tem muita despesa é normal cortar gastos, mas aqui no Brasil os políticos tentam enganar e não explicam as informações sobre as reformas. É preciso reverter esse quadro, conhecer os números, ter transparência”.

De acordo com Danilo, em 2008 a bolha que estourou nos Estados Unidos e que lavou a Europa foi segurada aqui e só estourou no primeiro mandato da Dilma. Danilo comenta que “a comunidade se move pela necessidade e pelo novo e é preciso mover a comunidade, o que pode ser mais fácil com a crise. As esquerdas tiveram seu período e a direita se organizou”.

Maiara comenta que as mulheres do bairro fizeram atividades sobre o 8 de Março na associação de moradores. Como proposta de encaminhamento, falou em pensar o trabalho de base na comunidade a partir da construção de material impresso, com linguagem didática sobre a reforma, para conversar com as pessoas.

Léa ressaltou, por fim, importância desse espaço de reflexão sobre os direitos, “no novo movimento pela sociedade que queremos, uma luta que estava no horizonte antes da mudança de rumo, e é preciso lutar no dia-a-dia, no executivo, legislativo e no judiciário, apesar de estar tão desacreditado, enfim retomar a luta para ter novas esperanças”.

Para Josué, “a reforma quer livrar a cara de políticos ligados à corrupção. Querem dizer que vão resolver fazendo reforma política aprovando voto em lista, ou seja, não é por aí. 2018 será apenas um momento de luta. O mérito do Temer é evidenciar o que vinhamos dizendo desde o golpe, eliminação de direitos, beneficiando rentistas. Josué também comentou da campanha Conselheiro Cidadão, que defende que a sociedade indique, em edital público para inscrição e avaliação dos candidatos.

Para Marilinda “não há esperança nesse congresso. O país precisa de uma reforma fiscal para promover igualdade. Estão preservadas as grandes fortunas! É preciso nacionalizar os bancos, é a única forma de democratizar a mídia, que é controlada por eles e são eles que consideram as reformas importantes, para seguir ganhando cada vez mais através da previdência privada complementar”.

Para a advogada, porém, a luta está dando resultados, comentando sobre como o Tribunal Regional Federal da 4 região conseguiu que fosse proibida a campanha nacional de mídia do governo sobre a reforma, que não informava e ainda intimidava a população, chantageando. “O Supremo também pediu ao governo os números que justifiquem a reforma, pois não há estudo por trás da proposta que explique, por exemplo, por que deve-se contribuir 49 anos para se obter 100% do salário de benefício. Se aprovou também uma CPI das contas da Previdência no Senado, e a CNBB lançou manifesto contra a reforma da previdência e se engajou na luta contra a mesma”.

Marilinda relembra que o modelo atual de previdência se baseia no modelo de produção fordista, de pleno emprego. Porém “estamos vivendo a 4a Revolução Industrial, cada vez mais uma minoria tem mais lucro e a maioria é mais pobre, que é preciso repensar como repartir a riqueza, temos que ter outro modelo de integração, como renda mínima digna, por exemplo”. Para Marilinda o caminho é organização para resistir, pois “a luta concreta mobiliza o povo que e há que se reestabelecer a solidariedade”.

Como encaminhamentos, ao final da reunião, ficaram a ideia de fazer um material sobre a reforma para dialogar com a população do bairro, fazer o debate sobre os benefícios de prestação continuada para esclarecer dúvidas da comunidade, construir um comitê regional contra a reforma da previdência social no bairro, integrar a greve geral do dia 28 de abril e lutar contra os cortes para a assistência social promovidos pelo prefeito Marquezan Junior.

Texto e fotos: Carina Kunze

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