Medida Provisória 905: mais uma bomba no colo dos trabalhadores

O ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Marcos Corrêa/PR

O governo federal já demonstrou que não há limites em sua ânsia pela desconstrução das regras que buscam de algum modo instaurar um Estado Social em nosso país.

A chamada “reforma” trabalhista representada pelas Leis 13.467 e 13.429 não foi suficiente. E olha que foram extremamente agressivas à classe trabalhadora as mudanças ali operadas: fragilizaram as entidades sindicais, facilitaram as despedidas, incentivaram a terceirização, retiraram fonte de custeio da Previdência Social. Criaram onerosidade para o acesso de quem é comprovadamente pobre à justiça, estabelecendo uma situação pior do que aquela prevista no CPC.

Desde 2017, o trabalhador que busca recuperar patrimônio que lhe foi subtraído durante o contrato de trabalho, através do Poder Judiciário Trabalhista, corre o risco de ser condenado a devolver ao agressor da ordem jurídica o que lhe for restituído.

A “reforma” da previdência conseguiu ser ainda pior. Aumentou o tempo de contribuição e a idade para a aposentadoria, alterou critério de cálculo que implicará redução do valor dos benefícios, dificultou o acesso a esses benefícios e aumentou alíquotas. Atingiu, principalmente, quem sobrevive com até dois salários mínimos por mês.

Nada disso alterou, ainda que minimamente, o crescente aumento do número de pessoas desempregadas e desalentadas ou fato de que a economia segue estagnada.

Ao lado dessa pauta, há claramente um aumento da violência real e simbólica contra a classe trabalhadora, revelada pelo deboche e pela omissão em relação às questões ambientais, pela violência estatal contra as populações periféricas e contra grevistas, ou por propostas de destruição de carreiras públicas em vários estados da federação. Há um verdadeiro frenesi na publicação, quase diária, de decretos e Medidas Provisórias (MP’s), e apresentação de projetos para legislar o que já está legislado, alterar a Constituição ou desnaturar legislações protetivas.

Nesse sentido, a MP 905, que diz tratar de um “contrato verde e amarelo” é um vômito de propostas de alteração de diferentes legislações, sem qualquer sistematização, mas com um propósito muito claro: suprimir direitos sociais.

Confira os direitos que serão retirados dos trabalhadores e trabalhadoras

Uma das poucas propostas de campanha do presidente eleito, a MP fixa que o valor do salário não pode ultrapassar um salário mínimo e meio e que as partes podem convencionar o pagamento mensal da metade da multa sobre os depósitos do FGTS, fixado em 20%; permite majoração da jornada para até dez horas por dia; estabelece a possibilidade de banco de hora tácito; permite que as empresas fiquem isentas de pagar INSS, contribuição para o SESC, SESI, SEBRAE e salário educação; não assegura o pagamento do seguro-desemprego (depende de autorização do Ministério da Economia por meio de portaria).

Estabelece, também, que quando o empregador optar por fazer seguro aos empregados que realizam atividades perigosas, o adicional de periculosidade será de 5%, e não mais de 30%, bem como que só será caracterizado trabalho perigoso se o trabalhador ficar exposto ao risco por no mínimo 50% da jornada de trabalho. Também extingue, a partir de 2020, a multa adicional de 10% sobre o saldo do FGTS quando o empregador despede, autoriza o trabalho em domingos e feriados e aos sábados, para os bancários, sem qualquer restrição.

A MP 905 é uma bomba

Quanto aos trabalhadores bancários, ainda refere que quando houver reconhecimento de que não há exercício de cargo de confiança, deverá ser abatido do valor das horas extras deferidas pela justiça a gratificação recebida. Estabelece que alimentos ou tickets-refeição não são tributáveis e nem integram a remuneração do trabalhador. Muda uma vez mais as disposições sobre gorjeta, fixando que devem ser rateadas entre os empregados, podendo o empregador, a depender do seu regime fiscal, reter entre 20% e 33% do valor para custear encargos trabalhistas e previdenciários. Reduz o valor da multa prevista no art. 477 da CLT para o equivalente a um salário do empregado.

Dispõe, também, que os auditores fiscais não poderão interditar atividade, estabelecimento, setor de serviço, máquina ou equipamento, ou embargar obra. Atribui ao INMETRO ou SINMETRO, como disciplinado pelo Ministério da Economia, o encargo de certificar EPI´s e examinar caldeiras e vasos de pressão.

Revoga a exigência de aprovação prévia para instalação de caldeiras, fornos e recipientes sob pressão e institui o “Termo de Compromisso” a ser firmado com os auditores trabalhistas, com prazo máximo de vigência de dois anos, vedando, em tal caso, que o Ministério Público do Trabalho exija TAC sobre o mesmo tema. Fixa desconto de contribuições previdenciárias ao beneficiário do seguro desemprego. Busca destruir os juros de mora; revoga a disposição constante do art. 21, IV, “d” da lei 8.213/91 que equipara o acidente de percurso ao acidente de trabalho. Retira da CTPS  a qualidade de documento civil. Esse rol sequer é exaustivo. 

É preciso reagir

A leitura da MP 905 cansa e entristece; é uma declaração de ódio a quem vive do trabalho, num país cuja economia e, portanto, os parâmetros de convivência social, estão baseados na produção e circulação e, pois, na capacidade de consumo e de vida digna justamente dessa maioria de brasileiras e brasileiros que sobrevivem do dinheiro obtido com o trabalho que realizam. 

E de nada adianta invocar a literalidade do artigo 62 da Constituição. Uma MP não pode tratar de matéria trabalhista, mas essa não é a primeira a fazer isso. A última, sob o ridículo epíteto de instituir uma “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica” e estabelecer “garantias de livre mercado, análise de impacto regulatório”, como se a Constituição de 1988 simplesmente não existisse, já virou lei.

Não adianta porque não se trata de um problema de compreensão jurídica. A literalidade da Constituição tem sido ignorada com uma frequência que nos impede de negar a realidade. Trata-se de uma vontade deliberada de alterar as regras do jogo de modo autoritário, subvertendo o que deveria ser o caminho democrático para a construção das normas de convívio social. Trata-se de uma política pública de morte, pois as alterações capitaneadas pelo governo federal vão todas no sentido de dificultar, até tornar impossível, a sobrevivência minimamente digna da maioria da população brasileira.

Para quem empreende e gera empregos no Brasil, a MP não faz mais do que gerar insegurança jurídica e retirar dinheiro de circulação. Algo que, como já ocorreu com a “reforma” trabalhista e se agravará com a aplicação das novas regras de seguridade social, implicará menos consumo e, portanto, afetará diretamente a economia nacional.

Em artigo recente, e como sempre brilhante, sobre a MP 905, o colega e amigo Jorge Luiz Souto Maior nos convoca a compreender que o mais recente ataque à classe trabalhadora “nos posiciona diante de uma encruzilhada histórica”, exigindo que nos posicionemos. Afinal, estamos “dispostos a sacrificar (de vez) as bases democráticas para obtenção de uma pequena e efêmera vantagem financeira”? A “democracia, afinal, importa ou não”? 

Essa é a pergunta fundamental que nos levará à necessária reação. A MP 905 não pode ser aplicada, nem deve ser convertida em lei. Precisa ser imediatamente denunciada aos organismos internacionais como o que realmente é: mais um capítulo de uma política determinada a fazer do Brasil um país para poucos.

Texto: Valdete Souto Severo (Diretora e Professora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS; Membra da AJD – Associação Juízes para a Democracia; Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, Juíza do Trabalho)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

×