Frederico Valdez Pereira: “A delação premiada permite quebrar a parceria entre criminosos”

livros fredericoOs acontecimentos recentes no âmbito da resposta estatal à criminalidade, ao mesmo tempo em que trazem a marca da inovação identificada em uma possível eficácia no enfrentamento do fenômeno criminal econômico-financeiro sofisticado, geram amplo interesse na sociedade, o que vem acompanhando também de críticas a métodos e instrumentos utilizados. Por certo a delação premiada aparece com destaque nesse quadro atual, merecendo atenção.

Até os anos de 1990 não se investigavam os crimes financeiros e do colarinho branco, por motivos que não cabem nesse espaço. No momento em que se passa a perseguir esses crimes, depara-se com a ineficácia dos tradicionais meios de investigação, que não obtêm resultados probatórios concretos, em uma reconhecida paralisia da investigação. Os órgãos de repressão penal não conseguem, com os tradicionais meios de prova, penetrar na estrutura delitiva de modo a colher provas dos fatos. Breve resumo permite constatar a afirmação. Inexistindo flagrante delito, os meios de prova empregados são essencialmente quatro: documentos, os quais não são deixados ou produzidos pelas organizações criminosas. As interceptações telefônicas, que tendem a se esgotar, pelos perigos constatados nessa forma de comunicação; os dados bancários e patrimoniais, que igualmente se vão convertendo em circuitos paralelos de difícil rastreamento e ligação com os titulares, muitas vezes com uso de laranjas e em paraísos fiscais. E as declarações de vítimas ou testemunhas, em face das quais se vêem promessas de recompensa, ameaças expressas ou veladas, tornando quase impotente essa fonte probatória.

Tornou-se indispensável, portanto, a adoção de novas técnicas de investigação criminal, o que foi reconhecido e reafirmado pelo legislador brasileiro nos últimos 30 anos, a partir da Lei dos Crimes Financeiros, na linha das Convenções Internacionais da ONU de enfrentamento ao crime organizado e de combate à corrupção, que recomendam expressamente estratégias de investigação sustentadas na colaboração com a justiça de pessoas envolvidas nos ilícitos investigados. A alternativa de estímulo à colaboração premiada é uma das únicas medidas eficazes por direcionar-se a superar a solidariedade criminosa. Nesse contexto, não há como negar a importância da técnica, ao menos, para auxiliar na identificação dos procedimentos da organização, da divisão interna de tarefas, e para chegar aos líderes e mentores da associação criminosa, além de contribuir decisivamente na localização e recuperação dos valores envolvidos nos ilícitos.

O fato é que muitas das censuras às estratégias investigativas apoiadas em delações premiadas ressoam no mais amplo desconhecimento do conjunto concreto dos elementos indiciários e das técnicas de apuração que circundam as colaborações com a justiça, e que são colocadas em prática ao longo de vários meses, corporificando-se em milhares de páginas de inquéritos e processos penais em curso. Está compreendida no exercício do direito à ampla defesa a tentativa dos advogados dos investigados de desqualificar elementos probatórios colhidos pela investigação. O que chama a atenção são manifestações de autoridades públicas direcionadas a deslegitimar genericamente técnica de prova acolhida pelo sistema penal brasileiro há quase 30 anos, e reafirmada em diversas leis posteriores em harmonia com convenções da comunidade internacional ratificadas pelo Brasil. Mais recentemente a Lei nº 12.850 de 2013 qualificou a legislação de enfrentamento do crime organizado, disciplinando a utilização da delação premiada em consonância com normativas de países estrangeiros que tratam do tema, permitindo o manejo adequado da técnica pelo juiz. Isoladamente considerada, a delação premiada não se constitui em prova suficiente para a condenação, há relativa presunção de suspeição nas declarações, a exigir-se análise conjunta da colaboração com outros elementos que permitam atestar a credibilidade dos relatos. A mera exposição de fatos não permite a utilização do instituto, é indispensável que o colaborador auxilie ativamente na busca de dados concretos que corroborem suas revelações, estando neste avanço investigativo os ganhos maiores do instituto. Parece difícil contestar que, para fenômenos delituosos como a criminalidade organizada e econômico-financeira, a investigação dependa de contributos oriundos de pessoas internas à própria atividade criminosa. Os fatos recentes confirmam isso, e sustentam a conclusão de que os ganhos da colaboração premiada superam, em muito, eventuais inconvenientes.

*Frederico Valdez Pereira é juiz federal e autor do livro Delação premiada – legitimidade e procedimento, entre outros.

Fonte: Revista Época

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