Inserido na programação do Fórum Social das Resistências, que ocorreu entre os dias 17 e 21 de janeiro de 2017 em Porto Alegre, o Instituto Akanni de Pesquisa e Assessoria em Direitos Humanos, Gênero, Raça e Etnias promoveu debate sobre a Reforma da Previdência e a retirada de direitos dos trabalhadores, especialmente das mulheres negras, que ocorreu dia 20, às 14h, na Fetrafi (Rua Cel. Fernando Machado, 820 – 2° andar).
O Instituto Akanni trabalha com comunidades quilombolas, atuando na área da violência e com questões de segurança pública que afetam a população negra, principalmente os jovens. Também trabalha desde 2008 com a população de imigrantes e refugiados, (tendo escrito artigo para Carta Capital), principalmente africanos e caribenhos, que enfrentam diversos obstáculos além dos culturais e da língua. As organizações que trabalham com imigrantes são muitas vezes ligadas às igrejas e remontam à colonização alemã.
De acordo com Reginete, coordenadora da instituição, “o Instituto trabalha de forma laica, atuando sobre questões como a previdência, pauta que se tornou mais importante desde 2014, com o cenário de retirada de direitos, que afeta em especial mulheres negras, tentando intervir no processo de forma organizada, nas estruturas de poder, para reverter esse quadro que afeta todos os trabalhadores mas, principalmente, esses que a pouco saíram da escravidão e ainda mal conquistaram os seus direitos”.
César, assessor do senador Paulo Paim, esteve presente na discussão e afirma que “esta reforma que se avizinha é cruel. 50 anos de contribuição para aposentadoria integral é desumano, será difícil trabalhar tanto tempo, mesmo pessoas que começam a trabalhar com 20 anos, sem nunca perder o emprego, terão de se aposentar com mais de 70 anos para obter o benefício integral, ou seja, ninguém vai se aposentar”. Para ele “a reforma vai passar e será aprovada em no máximo uma semana”. César afirma que existe uma campanha de amortização da opinião pública a respeito da reforma, utilizando reportagens que mostram pessoas idosas felizes trabalhando. “O povo tem que acordar, as panelas pararam, os empresários estão felizes, as pessoas não estão se envolvendo nas lutas. Vai aumentar a carga horária de trabalho, os empresários não querem mais pagar multa por demitir as pessoas, querem mais lucros, só que eles são representados por mais de 50% dos congressistas no Brasil”, concluiu o assessor do senador.
De acordo com Ernestina Pereira, diretora Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas e diretora do Sindicato de Trabalhadoras Domésticas de Pelotas, “a consciência da negritude se faz construir trabalhando, desde criança, na lida” e é essa consciência que movimentou a sua trajetória de luta, desde 1987, quando “com apenas 20 anos, sem ter estudado, trabalhava como doméstica, e a igreja fez uma campanha de informação sobre direitos, e isso me fez construir essa luta social”, fundando a associação de empregadas de Pelotas, em 1989, e criando, posteriormente, a Federação Nacional.
Ernestina também é coordenadora de um quilombo urbano em Pelotas e faz parte da organização do memorial dos Lanceiros Negros, em Bagé, fato histórico que, para ela “não deve ser esquecido, assim como a história desses indivíduos”. Em relação a luta do povo negro, Ernestina vê que essa militância como uma forma concreta de trazer resultados para contribuir para mobilização. Assim, trabalhando pelo direito dos trabalhadores, seja no sentido trabalhista ou previdenciário, Ernestina vê que sua luta é uma forma de construir a igualdade racial no país.
A sindicalista aponta que a grande maioria das empregadas domésticas é negra, uma herança escravocrata, e que essa relação de dominação faz com que não haja uma tradição de organização sindical da classe. Para Ernestina “a categoria precisa de representação sindical como qualquer outra, para organizar suas demandas e a luta por direitos, como a insalubridade, aposentadoria especial e a obrigatoriedade de uso de equipamento de segurança no trabalho”. Hoje a entidade não consegue liberar trabalhadoras para militar, o que dificulta a movimentação.
Para ela, com a reforma da Previdência, muitas domésticas estarão na informalidade. Ernestina denuncia a ONG patronal Doméstica Legal, do Rio de Janeiro, que pressiona os políticos para que haja uma diferenciação maior entre empregadas domésticas e diaristas, fazendo com que na lei conste que somente a partir de 3 dias de trabalho no mesmo local a pessoa seja considerada empregada doméstica, o que, na prática, incentiva a informalidade e “dá prosseguimento à desorganização e opressão sobre estas trabalhadoras”.
Laura Zacher, representante do Sindicato dos Trabalhadores da Defensoria Pública da União, apresentou um panorama da atuação da DPU na rede de acesso à justiça, trabalhando com sindicatos e inclusive com os SAJU da UFRGS, dando assessoria a quem não pode pagar. A DPU surgiu com a Constituição Federal de 1988 e abrange questões da área previdenciária e trabalhista. Porém há poucos funcionários e, por isso, hoje atuam essencialmente na área previdenciária. Laura comenta que em Brasília há uma área trabalhista na DPU que atua em específico com a categoria das trabalhadoras domésticas. Porém, “em Porto Alegre não há pessoas trabalhando com essa questão, tendo no quadro apenas 40 funcionários para atender todo o Rio Grande do Sul, número insuficiente para que todos acessem o direito, uma realidade que se repete em todo o país”. Para Laura a Defensoria Pública corre o risco de “se tornar apenas uma órgão acessório, sem função, sendo fechada, para que prevaleça advocacia privada”. Em relação, por exemplo, as perícias do INSS, afirma Laura, “conseguimos que o INSS reconhecesse laudos de médicos particulares, quando da demora para as perícias com funcionários da Previdência”.
Para a defensora pública, na previdência, “a aposentadoria rural é um benefício assistencial, esses trabalhadores não contribuem da mesma forma que os outros e, porém, recebem, e esse é um dos mecanismos principais de distribuidora de riqueza do país”. Todavia, também será questionado, com essa reforma, o benefício de prestação continuada para idosos e pessoas com deficiência, ampliando, provavelmente, para 65 anos a idade mínima para receber esse benefício. Para a defensora pública, “os trabalhadores rurais, quilombolas e os indígenas serão muito afetados pela reforma na previdência, já que em muitas situações eles trabalham em um sistema de troca, e o único dinheiro que circula entre essas comunidades vem desses benefícios, que hoje ameaçam cortar”. Para Laura também é pouco discutida a questão da dívida pública, “ninguém sabe como se formou, para quem é paga, todos pagam e ela só cresce, retirando dinheiro de direitos sociais em uma situação já calamitosa”.
A DPU também faz uma campanha de monitoramento de direitos sociais e afirmam que mulheres negras, indígenas e rurais serão as mais massacradas com a reforma, abrindo espaço para informalidade, que também cresce com a questão da vinda de imigrantes. “Os imigrantes chegam geralmente, começando pelos homens, que juntam dinheiro e, assim, trazem seus familiares, principalmente vindos do Haiti e Senegal. Eles não conhecem direitos trabalhistas e o cenário futuro é de grande exploração desses indivíduos e exige muita união”.
Por fim, Laura afirma que “é preciso que as trabalhadoras domésticas se organizem, que tenham uma vigilância permanente sobre seus direitos e o sindicato tem que propor ofícios trabalhistas para as unidades da DPU no Brasil e brigar por aumento no número de nomeações de novos funcionários para trabalhar na defesa do trabalhador”. Para ela “O que se avizinha é a privatização da previdência pública, da saúde e da educação, valorizando fundos privados de aposentadoria, planos de saúde particulares e escolas privadas, ou escolas públicas com parcerias público-privadas”.
Beatriz Vasconcelos falou da necessidade de “união do povo negro com os trabalhadores para lutar por direitos. Essa discussão não pode terminar aqui, é importante a construção de uma união, com encaminhamentos, para lutar contras as mídias, como a Globo, que fazem discurso de que tudo está melhorando”. Para Beatriz, a população hoje está anestesiada e “a votação dessa reforma será às pressas, provavelmente de madrugada e de preferência durante o carnaval”.
Para ela, o argumento utilizado para propor a reforma na Previdência, do envelhecimento da população, já que em 2016 existiam 131 milhões de idosos no Brasil e em 2060 a projeção afirma que serão 141 milhões, não havendo, então, verba para pagamento dos benefícios de todos, é falho. “O governo propõe que se trabalhe mais antes de se aposentar, só que essa projeção é feita por economias que esquecem que a população negra no país não chega à velhice, não tem a mesma expectativa de vida que os brancos, ela é mais baixa”, afirma Beatriz.
No caso da população negra, a pobreza é extrema e, afirma Beatriz, “mesmo que a DPU tenha beneficiado pessoas na fila da perícia do INSS, apresentando a possibilidade de serem aceitos laudos de médicos particulares, a população negra mais pobre no país não foi beneficiada por essa ação, não tendo dinheiro para consultas com médicos privados”. Por fim, Beatriz reforça importância de discussões como essa, “já que mulheres negras recebem em média 25% a menos de salário do que homens brancos com a mesma escolaridade e no mesmo cargo e, por isso, são as mais afetadas com a reforma”.
Reginete Souza Bispo, socióloga, especialista em Direitos Humanos e coordenadora do Instituto Akanni, falou sobre como esse momento é novo em relação a outros vividos na história do país e, por isso, o povo parece estar anestesiado. Para ela, “o que o congresso e o governo estão fazendo não passa na cabeça de quem está na militância desde os anos 80, ninguém acredita, e a mídia não informa o que irá mudar, insistindo que está tudo bem, seguro e tranquilo, enquanto direitos que estão sendo retirados nem chegaram a ser plenamente conquistados e usufruídos pela população negra do país”. Segundo Reginete, quem nasceu nos anos da ditadura militar não conhecia ainda a cara da elite conservadora do país e nem do que são capazes de fazer. “Quando começamos a conquistar pequenos avanços na consolidação de direitos, eles se organizam”. Para a socióloga, “querem retirar direitos dos quilombos e das propriedades de terra populares por mudarem a lógica de produção”. Para ela é preciso criar uma articulação de ação, um encontro de diferentes pessoas de diferentes áreas de atuação, para contribuir com o debate da Previdência. “Essa questão envolve direito do trabalho e aposentadoria, puxando muitas outras pautas, e todas agredindo diretamente a trabalhadora negra”.
Marilinda Marques Fernandes, advogada especialista em direito da seguridade social, comentou como a defensoria pública faz um importante trabalho, “por exemplo, depois do pente fino dos auxílios-doença e aposentadorias proposto pelo governo Temer, a Defensoria defendeu os trabalhadores que tiveram benefícios cortados, enquanto outros advogados os exploravam. É preciso recomendar a Defensoria Pública para os sindicatos e operadores de direito que atuam no quadro de uma advocacia militante comprometida com as lutas dos trabalhadores e não dar espaço para práticas de advocacia predatória”.
Segundo Marilinda, a reforma na previdência está sendo levada a cabo a anos, a primeira tendo ocorrido em 1998, proposta pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, modificando a Constituição de 1988 e introduzindo o fator previdenciário, que reduz até a metade o valor do benefício de aposentadoria. Houve também reformas em 2003, com o governo Lula e outra em junho de 2015, com a Dilma, está última atacando, então, o benefício das pensões, agora não mais integrais e com o recebimento condicionado ao tempo de relacionamento do casal, com escala de tempo de recebimento de pensão dependendo da idade do(a) cônjuge. Mais recentemente o presidente Temer, através da MP 749, pediu a revisão dos auxílios doenças e aposentadorias por invalidez e modificou o acesso ao benefício de salário-maternidade, aumentando o tempo de carência necessário de 3 meses para 10 meses de contribuição.
Para a advogada “essas reformas se fizeram aos poucos, ao longo do tempo, e população não sentiu, mas esse governo avança mais, com o respaldo do congresso, afirmando que sem reduzir direitos não se sai da crise. Porém, reduzem apenas da parte do trabalhador. Hoje, enquanto estamos aqui, ocorre o Fórum de Davos, enquanto constatamos que os oito homens mais ricos do mundo têm, juntos, concentrada a renda de mais da metade da população do planeta. Então, quando se discute viver mais, esse não é o problema, o problema é viver mais doente. Na verdade, muitas vezes apenas se sobrevive. No mundo, são os pobres que mais adoecem. É preciso redistribuição de renda e não redução de direitos das áreas da saúde, da educação e da Previdência. Na Fazenda estão sempre representantes de bancos e do capital financeiro, apresentando políticas sempre com teto para investimentos na saúde, na educação, na assistência, mas não para o pagamento da dívida pública, por exemplo”.
Em relação à idade mínima para aposentadoria, Marilinda afirma que os 5 anos a menos que mulheres têm de obrigatoriedade de trabalho para se aposentar “é considerada uma reparação por ganharmos menos, tendo tripla jornada de trabalho, com contratos com menor tempo de duração e sermos maioria no trabalho informal, não se podendo ignorar este aspecto sócio-histórico”.
Mais grave do que isso, afirma Marilinda, o aumento do tempo mínimo de contribuição para aposentadoria por idade, que é hoje de 15 anos para quem tem 60 (mulher) ou 65 (homens), deverá ser de no mínimo 25 anos. Já que mulheres ganham menos, “essa reforma coloca outra condição que será preocupante para as mulheres, mesmo as que conseguem igualdade em relação aos homens no mercado de trabalho, que serão mais afetadas que os homens pela necessidade de 49 anos de contribuição para obtenção do benefício integral, por que o cálculo para obter o valor do benefício de aposentadoria será feito com base em uma média de todos os salários que a pessoa recebeu desde o início da sua trajetória no mercado de trabalho. Porém, homens e mulheres têm trajetórias diferentes e, em geral o histórico da mulher mostra sempre ganhando menos, o que irá rebaixar o valor do beneficio de sua aposentadoria, que provavelmente será menor que o de seu colega homem quese aposentar com a mesma idade, no mesmo cargo que ela, ganhando o mesmo salário”.
O auxílio de prestação continuada também corre risco, afirma a advogada, e provavelmente será desvinculado do salário-mínimo, apresentando a possibilidade de recebimento de benefícios com valores pagos abaixo do mínimo, inclusive para pensão. As mulheres, principalmente pobres, também serão bastante afetadas pela nova regra de não acumulação de aposentadoria com pensão. “Por exemplo, hoje um casal pobre, aposentado, recebem dois salários-mínimos de aposentadoria juntos. Quando um morre, aquele que permanece, geralmente as mulheres, que vivem mais, deverá optar por receber ou pensão ou aposentadoria e, no caso desse exemplo, ficar apenas com um salário-mínimo para seu sustento, tendo de reformular toda sua vida financeira com aproximadamente 70 anos de idade, quando mais precisa de auxílio e mais se gasta com remédio”.
Ao final, após perguntas e comentários dos presentes, foram apontados como encaminhamentos desse debate que seja feita uma carta nesse fórum com propostas em relação aos pontos da reforma que mais afetam população negra, principalmente as mulheres, assim como a criação de um fórum permanente de discussão sobre previdência, formar uma organização a partir dos municípios, com pressão e questionamento dos deputados estaduais e federais, além de um seminário sobre a reforma da previdência, mais aprofundado, amplo, para unificar a luta, com mobilização nas comunidades, universidades, escolas, entidades e outros espaços.