O filme O Capital (2012), dirigido por Constantin Costa-Gravas, bem soube lançar a dialética do bom e velho Karl Marx (1818-1883) contra as próprias expectativas emancipatórias. Acompanhamos a trajetória de Marc Tourneuil, o novo presidente francês de um mega banco europeu – e americano e asiático e latino. Em determinado momento, a família do mais novo magnata se reúne para celebrar. A França, histórico reduto dos movimentos de contestação, parece preservar uma relíquia de esquerda em cada família. Assim, o tio do mais novo multimilionário é um histórico sindicalista. Logo, a tese do movimento operário e a antítese do mercado financeiro se entrechocam após o almoço:
Marc limpa o canto direito da boca com o guardanapo de seda antes de colocar o esquerdismo do tio contra a parede.
? Pois eu também esperava mais de você e da esquerda, tio, muito mais! Eu esperava muito mais da Internacional! Mas, veja só que ironia, a História me obriga a te fazer a seguinte pergunta, tio: quem são os verdadeiros internacionalistas, hein? (Marc pede emprestado o carrinho de controle remoto com que o sobrinho brinca sobre o tapete persa.) Veja este carrinho, tio: as rodas foram feitas na Tailândia; a carroceria de acrílico foi produzida no Brasil, mas foi mais racional mandá-la pintar no Paquistão; a antena veio do Chile; o sistema elétrico foi desenvolvido no Vale do Silício, Califórnia – God bless America, Deus abençoe a América! Assim, tio, eu volto a lhe perguntar: quem são os verdadeiros internacionalistas? Nós ou vocês? Perto da Internacional Consumista, a Internacional Comunista não passa de uma confraria de nostálgicos na contemporaneidade histórica, tio. Que revolução socialista se fez verdadeiramente internacional em face do sistema financeiro mundial? Pois ouça o que a dialética tem a lhe dizer, meu querido tio sindicalista: o capital é a verdadeira força internacionalista. Nós rompemos a barreira entre o espaço e o tempo, nós colocamos Che Guevara no rótulo da Coca-Cola. I’m loving it – amo muito tudo isso! Pois eu estou esperando a sua resposta, tio, o que aconteceu? O gato comeu sua língua?
Na Era dos Extremos, o historiador Eric Hobsbawm (1917-2012) já notara que, com o enfraquecimento da esquerda internacional em fins da década de 70 – não à toa, período concomitante ao surgimento do neoliberalismo com Thatcher e Reagan –, as causas sociais passaram do implemento da revolução para reivindicações pontuais e micrológicas. O aquecimento global; a renda mínima; o desmatamento ecológico; a subnutrição. É no mínimo contraditório perceber que o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional tendem a encampar e a financiar tais bandeiras de pronto. Enquanto isso, a bandeira revolucionária sequer tremula a meio mastro. Ora, nesse contexto de emparedamento histórico, a pergunta do bom e velho Vladimir Ilitch Ulianov, também conhecido como Lênin (1870-1924), se impõe ainda uma vez:
? Que fazer?
A dialética parece vítima da própria contradição que a faz apreender o movimento de (re)produção social. Nunca antes na história humana foi possível distribuir a riqueza com mais justiça do que na contemporaneidade – ainda assim, a esmagadora maioria da humanidade desconhece o saneamento básico e padece por conta de enfermidades desinteressantes para a indústria farmacêutica: é preciso usar a razão instrumental para calcular se o custo das pesquisas laboratoriais será compensado pelos consumidores; do contrário, que os mortos enterrem os mortos. Nunca antes na história humana foi possível projetar uma vida para além do trabalho coercitivo e alienado – ainda assim, com o ápice da tecnologia, trabalhamos mais e mais em empregos que não têm quaisquer vinculações com nossas aspirações mais próprias; o ápice da contradição que se desenvolve pela razão instrumental, isto é, pela razão dos trustes que comandam a sociedade, faz com que a tecnologia, que deveria estar a serviço da humanidade, comece a subtrair postos de trabalho em escala planetária. Antes, lutávamos contra a exploração; hoje, lutamos para continuarmos a ser explorados.
Os revolucionários franceses, em 1793, passaram a cortar cabeças. O primeiro pescoço rasgado pela guilhotina foi o do monarca Luís XVI. A simbologia era inequívoca: era preciso fazer tábula rasa da História, era preciso reiniciar a humanidade e seu conjunto de valores. O leitor e a leitora já sabem quais foram os desdobramentos da Revolução Francesa: o imperialismo continental de Napoleão Bonaparte, tataravô do magnata internacionalista Marc Tourneuil. Assim, podemos lançar mão da mesma lógica que embasou o Terror da Revolução Francesa para fazermos a seguinte pergunta: adianta depor Marc Tourneuil e sua camarilha? Adianta cortar cabeças? O leitor e a leitora devem se lembrar da aula de Zoologia do ensino médio – quando este escritor estudou os platelmintos, o ensino médio era chamado de colegial. Vocês se lembram da planária? Trata-se de um verme peculiar: quando cortada ao meio, cada metade da planária dá à luz uma nova planária. Assim, quando a guilhotina elimina Marc Tourneuil, encontramos, no mínimo, dois novos financistas ávidos para a ocupação do trono.
Tese: “Que fazer?” – brada o bom e velho Lênin.
Antítese: “Fazer, executar” – sentencia Marc Tourneuil.
Até o presente momento, a reprodução da plenária parece ser a imagem de nossa síntese.
Flávio Ricardo Vassoler
Fonte: Carta Maior