O jogo não terminou. A situação de exceção está em marcha e vai avançando conforme um plano bem estabelecido.
Por Antonio Baylos
Na Europa, desde o início da crise do Euro em 2010, se tem elaborado e aplicado uma série de políticas chamadas de “austeridade” coordenadas e dirigidas por um conglomerado de instituições políticas e financeiras que se situam fora da arquitetura estável e orgânica da União Europeia: a Troika. O principal efeito e o objetivo central destas políticas de austeridade tem sido o de desmantelar as garantias estatais e coletivas do direito do trabalho e reconfigurar em parâmetros meramente assistencialistas as estruturas da Seguridade Social, impedir os investimentos e o gasto social dos serviços públicos de ensino e saúde pública, entorpecer a atuação do Estado mediante a redução dos efetivos dos empregados públicos e de seus salários. A governança econômica se caracteriza, além disso, por um antissindicalismo próprio da ideologia neoliberal que o alimenta, degrada as garantias do trabalho como forma de dissolver o poder e a presença sindical, rompe a capacidade geral de representação do sindicato ao tentar entorpecer o direito de negociação coletiva e reduzir a taxa de cobertura da mesma, impede a capacidade de interlocução com o poder público e sepulta o diálogo social, além de reprimir a capacidade de pressão e de intimidação que o sindicalismo possui através principalmente da greve e do direito de manifestação pública. Grécia, Espanha, Portugal primeiro, logo Itália, Bélgica e agora França submergem-se nesse mesmo pântano. E a situação se prolonga também de modo idêntico no leste europeu.
Mas o mais significativo – e quiçá no que menos se tem reparado – é que têm-se conseguido impor uma situação de exceção que justifica a emanação de normas de urgência sobre a base da excepcionalidade a qual derrota elementos essenciais dos direitos democráticos reconhecidos com de caráter fundamental nas respectivas constituições nacionais bem como em Tratados internacionais sobre direitos humanos que vinculam os Estados-membros e tornam ineficaz a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia. Esta situação de exceção não se materializa mediante um ato ou decisão do Estado que declara formalmente tal alteração substancial do sistema de direitos, mas se produz de maneira informal, pela via de fato, através da utilização dos canais institucionais ordinários – o uso exorbitante da legislação de urgência nas mãos do governo, a suspensão permanente dos mecanismos de participação democrática e do diálogo social com os sindicatos etc. – e se reforça midiaticamente o domínio tendencialmente completo da informação que conforma a opinião pública.
Se fosse possível sintetizar, caberia dizer que o modo de atuar das forças do privilégio econômico nesta crise tem sido o de degradar os mecanismos democráticos e sua ancoragem social mediante o emprego de uma situação de exceção permanente que os esvazia de conteúdo e anula sua eficácia ao mesmo tempo que os substitui por elementos de tipo autoritário e antissocial que se querem estabilizar como o novo quadro de referência político. A situação de exceção impede que funcionem os mecanismos garantidores da democracia e por consequência, força uma transição a um modelo neo-autoritário de relações trabalhistas que se quer afiançar de forma permanente, comprometendo neste novo horizonte de sentido às grandes forças políticas europeias, de centro direita e centro esquerda, que impulsionam e asseguram o chamado governo econômico europeu.
Este modus operandi é o que se está produzindo no Brasil de uma forma mais tosca e descarada. A teorização da situação desde a afirmação de que se criou um verdadeiro estado de exceção já a realizou de forma lúcida e fundamentada Tarso Genro em um artigo – “Do direito e da exceção dentro do ajuste” – publicado no número 1 da Revista de Derecho Social Latinoamérica. O chamado impeachment da presidenta Dilma Rousseff significa simplesmente a alteração dos resultados derivados da eleição por sufrágio universal dessa pessoa, recusando pela força os resultados da eleição.
Dilma Rousseff, portanto, não deveria ter vencido as eleições. Os brasileiros deveriam ter escolhido o candidato que liderava a coalizão de centro-direita. Este era o desígnio do poder econômico-financeiro no Brasil, que correspondia à necessidade de dar um giro político definitivo em todo o continente sul-americano e em especial nos dois grandes atores econômicos e políticos da zona, Argentina e Brasil. Na Argentina, em grande medida graças aos erros do kirchnerismo na seleção de candidatos e a conhecida patrimonialização do espaço público pelo peronismo, os prognósticos do conglomerado econômico-financeiro cumpriram-se e conseguiram a vitória de Macri e seu governo repleto de CEOs das correspondentes multinacionais. Na Venezuela, o sistema chavista encontra-se fortemente debilitado, em que pese o seu presidencialismo, ante a vitória de uma oposição eficientemente unida desde a extrema direita até uma parte da centro-esquerda, que lhe arrebatou o controle do parlamento. São bem conhecidas as dificuldades do governo democrático do Equador e a legitimidade de Evo Morales na Bolívia se encontra muito deteriorada, depois da perda do referendo. No Chile, o programa de reformas de progresso de Bachelet se confronta a uma oposição pós-pinochetista que tem sólidos aliados no interior do bloco majoritário do governo e reproduz os esquemas básicos do neoliberalismo autoritário que se impôs em matéria econômica e social na transição à democracia. Peru se desloca até um possível cenário eleitoral no qual a sobra do fujimorismo e seu autoritarismo político e social é uma ameaça muito presente, e Colômbia, paradoxalmente, abre um espaço de debate político democrático interessante com a possível transição que leva consigo as conversas de paz e os esforços pela reinstalação dos combatentes em um tecido social lacerado pelo neoliberalismo, a privação de direitos sindicais e a guerra. Frente a esse panorama, somente o Uruguai, com a nova vitória da Frente Ampla e o Brasil, com a reeleição de Rousseff, expressavam o consenso majoritário dos cidadãos a respeito das políticas de progresso e de emancipação social em um contexto global especialmente contrário às mesmas.
Mas o Brasil é em si mesmo um continente e seu peso específico em matéria econômica e no contexto internacional, é algo decisivo. Sucede ademais que o modelo de desenvolvimento econômico e social que este país vinha construindo em dois períodos de presidência de Lula (2002-2010) e no primeiro quadriênio de Dilma (2010-2014), estava possivelmente esgotado, e a capacidade do PT gerar um novo desenho das políticas de reforma e de transformação social, se encontrava paralisada entre a divisão interna neste partido entre seus setores sociais-liberais e os que, ao contrário, mantinham de maneira mais inteligente a necessidade de dar um salto na estratégia de reforma. Esta paralisação interna do PT tem permitido, depois das últimas eleições, uma contraofensiva dos setores que haviam perdido as mesmas, de maneira que através de uma estratégia de mobilização social orientada midiaticamente, puderam recuperar não só a iniciativa política – obrigando o governo Dilma a concessões importantes em sua política econômica – senão a algo mais importante, a ablação desta maioria democrática conseguida mediante o peso dos votos das classes subalternas, no fim das contas superior numericamente. Um resultado que deveria ser revertido.
Este é o momento de excepcionalidade política que permitiria a recuperação do poder político e a implantação de um desenho econômico e social submetido às decisões diretas dos mercados financeiros que pudessem pôr em prática uma transição a um esquema neoautoritario e liberal de forma decidida. Nesta situação, portanto, se subvertem os fundamentos democráticos e se “liberam” os aparatos estatais que podem comprometer mais diretamente a liberdade pessoal e a imagem pública sem passar pela luta política: o judiciário e a polícia.
A partir de um plano minuciosamente executado, o elemento central da acusação que permitiria a reversão do resultado democrático era a denúncia da corrupção do PT – que já havia tido importantes precedentes em anos anteriores, quando Lula era o presidente -, a cumplicidade com os esquemas de corrupção por parte da presidência da república e, de maneira muito especial, a implicação do ex presidente Lula, questão fundamental já que é conhecido que a popularidade deste e sua capacidade de liderança impediria, caso se apresentasse como candidato nas próximas eleições, a vitória de um novo candidato conservador. De tal maneira que, através das investigações sobre os vínculos entre a grande companhia estatal de combustível, Petrobras, e uma série de dirigentes do PT em uma ampla operação de lavagem de dinheiro, surge a acusação explícita contra Lula de que possui uma cobertura espetacular em São Paulo como fruto ilícito de corrupção e subornos da companhia. A operação é dirigida pela atuação de um juiz de primeiro grau que a inicia em Curitiba (Paraná) e que em seus próprios autos se identifica com o sujeito providencial que pode acabar com Lula como nos Estados Unidos se acabou com Nixon no caso Watergate, e que desenvolve toda uma série de ações claramente vulnerabilizadoras das garantias que deve rodear a qualquer processo penal de imputação a uma pessoa, desde a condução forçada, mediante enorme dispersão policial, quando este podia perfeitamente comparecer voluntariamente, até a autorização das escutas telefônicas do ex-presidente com seus advogados e com a própria presidenta da República, violando flagrantemente a intimidade e a privacidade. Estas atuações penais, com a plena admissão do aparato policial, estão sendo retroalimentadas por uma impressionante campanha de opinião que leva a cabo o grupo midiático mais importante do país – O Globo – e que, por sua vez, mantém uma importante tensão mobilizadora mediante a convocação de atos de repulsa à corrupção e impressionantes manifestações onde já abertamente se pede não só a demissão – o impeachment – da Presidenta (tramitado na Câmara dos Deputados em dezembro de 2015), mas também diretamente a declaração de um estado de exceção que seja gestionado pelas forças armadas e reverta a decisão democrática que elegeu a Dilma Rousseff.
O desenho midiático-policial vem acompanhado pelas forças políticas de oposição, mas não o protagonizam, aparecendo como comparsas de uma operação da qual podem se beneficiar só cumprindo o papel de legitimar a posteriori o golpe branco que organiza e dirige o complexo econômico-financeiro brasileiro. A instabilidade política que normalmente se analisa como um elemento negativo para economia não parece importar agora, quando a instabilidade provém de uma ampla operação de desestabilização democrática. O clima de ódio entre os cidadãos – muito tingido por um preconceito de classe e de raça – forma parte desse desenho e dá por suposto que a resistência do PT e das classes populares pode ser quebrado. No entanto, as manifestações do 18 de março em todo o país – uma maré de cor vermelha frente a que ostentava as cores amarela e verde da bandeira nacional que distinguiam as efetuadas no dia 13 do mesmo mês contra a presidenta Dilma e pelo processo do ex-presidente Lula e, mais em extenso, contra o próprio Partido dos Trabalhadores – puseram de forma manifesta que a maioria democrática tem ainda um forte apoio das massas.
Mas o procedimento de destituição da Presidenta teve início em uma tumultuada sessão do Parlamento, o já internacionalmente célebre 17 de abril e que, pelas características específicas do arranjo pelos quais se desenvolveu, tem oferecido sérias dúvidas sobre sua própria validade e viabilidade do impeachment em termos democráticos. Visto de fora, essa sessão parlamentar resultou em uma ofensa democrática para um Estado como o brasileiro, que tem gozado de uma autoridade moral inegável na construção das estruturas que o regem. O absurdo carnavalesco que consiste na culpabilizada da presidenta por todos aqueles deputados que têm processos abertos por corrupção, começando pelo vil presidente da Câmera, unido às incompreensíveis afirmações de crenças religiosas expressadas com um fanatismo insólito, para não falar da orgulhosa reivindicação da tortura e da ditadura militar, causaram um dano enorme a imagem internacional da nação, a qual aparece deformada no espelho grotesco do fascismo social que estas intervenções põem de forma manifesta e que transformam o conjunto da sociedade.
O jogo não terminou. A situação de exceção está em marcha e vai avançando conforme um plano bem estabelecido. Está claro que o desenho desestabilizador é eficaz e está gerando um clima de enfrentamento civil extremamente forte o qual, no entanto, não se conhece em sua complexidade nem se explica pelos meios de comunicação de cobertura global, particularmente nem pelos meios espanhóis sempre propensos a reproduzir a visão de seus colegas brasileiros, e, portanto, a alimentar o projeto político que quer deslegitimar e reverter o resultado eleitoral que levou Dilma Rousseff à presidência da República. É certo que o Brasil não é Honduras – recordemos o golpe que retirou o presidente Zelaya do poder e o substituiu por governos fantoches que têm procedido à vulnerabilidade sistemática dos direitos humanos naquele país – mas o desenho de golpe branco – a destituição da Presidenta, sua substituição por outra autoridade do Estado e a tutela militar e policial desta reversão democrática – é muito semelhante. Quando a pressão midiática tem sido mais forte, em perfeita sincronia com a ação policial, se tem produzido numerosos ataques às sedes sindicais e do PT, cujos militantes estão em estado de alerta reunidos em assembleia e defendendo seus locais. É nos espaços institucionais onde de ventila agora os seguintes passos do combate. A destituição não deve ser permitida, e caso se produza, a dissolução das câmaras e a convocatória de novas eleições deveria ser o passo coerente com esta situação para que um processo eleitoral democrático possa recompor os fundamentos institucionais do sistema. Para que a situação de excepcionalidade política não consiga forçar a transição a um modelo autoritário e neoliberal desarticulando as resistências coletivas que se opõe a ele.
Antonio Baylos é Professor Catedrático de Direito do Trabalho e Diretor do Centro Europeu e Latinoamericano para o Dialogo Social (CELDS) da Universidade de Castilla-La Mancha. Artigo elaborado a partir de dois “posts” no blog do autor, de 22 de março e 2 de maio de 2016).
Fonte: Jornal GGN