Na mitologia africana, em específico na cultura Bantu, existem três entidades de inversão, Kapenga, Kakunda e Kalunga, que pretendem fazer as coisas pelo contrário, como se virassem determinada situação ao avesso, em um giro de 180º. Quando entramos na Faculdade de Direito, alguns anos atrás, foi como se tivessem aparecido e nos arrancado da situação em que estávamos, nos colocado de cabeça para baixo. Hoje, quando saímos da Faculdade de Direito, parece que Kalunga, Kapenga ou Kakunda estão aqui novamente, nos fazendo girar em 180º mais uma vez. Porém, desafiando a matemática – afinal, somos de humanas –, não voltamos para o mesmo lugar.
Quando fui escolhida pela turma para ser a sua porta-voz no discurso de formatura, pensei em como poderia fazê-lo inovador. Como desvelar aquelas coisas que presenciamos e aprendemos nesses anos e que em geral ficam escondidas sob palavras bonitas em um discurso pomposo com termos difíceis e que no fim nem sempre nos inspiram, nem sempre nos dizem algo novo? Como aglutinar palavras de uma maneira genuinamente sincera, que resuma o ciclo de anos de graduação em dez minutos? Bastante ambicioso, não?
Dentre as coisas importantes que aprendemos na faculdade, está o fato de que é honesto reconhecer que existem várias formas de se contar uma mesma história que, por sua vez, pode se transformar em diversas narrativas diferentes, tal qual as versões do autor e do réu. Por lógica, também é honesto explicitar através de qual voz se decide contar uma história. Este discurso, portanto, parte da perspectiva que temos desde o interior do castelinho. Isso é o que de novo podemos trazer para dividir com todas e todos nesse dia, pois foi isso que nos formou, nos moldou e vai influenciar a maneira como atuaremos enquanto operadores de direito.
Saibam que, durante esses anos, nos movimentamos muito, o que tornou impossível não perceber as correntes que nos amarravam. Esses movimentos nos permitiram também presenciar a alteração do estado de coisas rígido e imponente em que a Faculdade de Direito se encontrava quando lá chegamos. Presenciamos um processo ainda tímido de abertura de espaços de escuta na Faculdade, iniciado antes de nossa entrada e o qual acompanhamos nesses últimos anos, ao menos desde o movimento pela paridade dos pesos dos votos de discentes, docentes e servidores nos departamentos e comissões, além da campanha do “Não voto em quem me veta” que visava demonstrar o repúdio à falta de diálogo entre alunos e professores, da união das alunas e alunos pela reprovação de estágios probatórios que não preenchiam todos os requisitos necessários, da ocupação da faculdade de direito em protesto às suspeitas de fraude no Concurso Público para Professor de Direito Penal e Criminologia e de todos os movimentos dos estudantes que foram, pouco a pouco, rompendo essa estrutura rígida, impondo que o eco de nossas vozes se fizesse presente nos corredores, apesar da insatisfação de alguns. Ao fim da graduação, ante uma denúncia de assédio realizada por nós, alunas desta turma, entramos na sala da direção –dessa vez de forma autorizada, sem barracas ou cachorros-quentes, ao lado do Centro Acadêmico e do Coletivo de Negras e Negros da Faculdade – o Dandara –, para conversar sobre o racismo e o machismo infelizmente ainda muito presentes na nossa faculdade. Apesar do triste motivo que nos levou a abrir esse diálogo, sentimo-nos motivados ao vislumbrarmos, ao menos no último ano, essa possibilidade de escuta.
Ainda dentro dessa metamorfose, acompanhamos – alguns aqui já desde o início – o processo de implementação das cotas na Universidade, que se deu em 2008. Em 2012, teve início a expansão, com o REUNI, que culminou na democratização da Universidade através da ampliação significativa do número de vagas nos cursos de graduação.
Entretanto, não agrada a gregos e troianos a presença de minorias nos espaços acadêmicos. Apagando as luzes do banheiro da Faculdade de Direito, por exemplo, foram desenhadas duas suásticas nazistas e escritos os dizeres “morte a negros e gays”, em resposta a um cartaz do Grupo G8 do Saju, em alusão à semana de visibilidade bissexual. Por quê?
Porque apesar da democratização, da popularização e do enegrecimento da Universidade, é indiscutível o apartheid sofrido por esse novo grupo de estudantes. Logo no início do REUNI, veio o susto com a determinação superior: às turmas de primeiro semestre – compostas exclusivamente por alunos não cotistas – foi dada autorização para usar e abusar do Castelo. Já às turmas de segundo semestre – duas mistas e uma somente composta por cotistas – ficou a mensagem: a Casa é grande, mas não tem lugar para todos. Visando suavizar essa separação, os próprios alunos, através do Centro Acadêmico, propuseram um esquema de revezamento de salas, em que o convívio e o aprendizado de todos, independente da modalidade de acesso, se daria ao menos de forma equânime dentro do sabidamente privilegiado Prédio de nossa faculdade.
É de se questionar qual o critério que determinou a alocação dos alunos, embora seja verdadeiro afirmar que o “apartheid” também decorreu do sucateamento das Universidades Públicas e da falta de estrutura necessária para receber tantos novos alunos. O famigerado prédio branco, construído justamente para recebê-los, acabou sendo interditado judicialmente, já que, para fugir das salas de aula com pôças e goteiras, a escada não era o meio confiável: ameaçava cair a qualquer momento.
Nessa linha, é verdadeira a política de assistência estudantil, mas é urgente sua melhoria em relação à inclusão e à não evasão destas novas caras, caso realmente se queira mantê-las. No semestre passado, o auxílio-material, quantia de 180 reais dada pela Universidade aos alunos carentes, chegou em menor valor e somente no início de janeiro deste ano. Ainda que não se olvide o contexto social e econômico que vivemos, não se pode deixar de reivindicar uma política mais efetiva de permanência.
Com excelência acadêmica ou não, dependendo da fase, estamos concluindo o curso com saldo positivo. Recebemos, durante a graduação, não só educação técnica. Aliás, arrisco dizer que os momentos em que mais aprendemos foram aqueles em que não estávamos nas condições típicas de uma sala de aula. Acredito que ficou extremamente óbvio em nossas mentes o quanto podemos nos formar humana, social e criticamente sem a obrigação de apoiar-se num conhecimento técnico, no dia em que, em um espaço cedido na aula do Professor Jamil, paramos para olhar uns aos outros. Conversamos justamente sobre o racismo e o machismo dentro da Faculdade e na sociedade e, sem necessidade de argumentos técnicos, nos foi possível exercer a alteridade. Pela primeira vez, verdadeiramente escutamos uns aos outros, não enquanto acadêmicos, mas sim como pessoas. Não nos foi necessário levantar nenhuma doutrina, nenhum artigo de lei, nenhum precedente. Pudemos enxergar o quê há de humanidade em cada um de nós. O aprendizado daquele dia foi tão significativo que transbordou dos olhos de muitos de nós e que culminou não em notas ou em linhas para o currículo, mas em abraços e em solidariedade de uns com os outros e, principalmente, em sororidade de umas com as outras.
Além das coisas que só se veem de dentro da Faculdade de Direito, já trazidas, creio que uma das que mais sobressaem do lado de fora é a linguagem bastante peculiar que os futuros operadores do direito adotam com o passar dos anos. Desde cedo, vamos tornando-nos conhecidos e estranhados, dentro e fora da Universidade, como usuários dessa linguagem encastelada, fechada em si mesma, cheia de maneirismos e bizarrices. Um palavratório jurídico que muitas vezes funciona como uma capa de complexidade, a qual disfarça, propositadamente de maneira confusa, as verdadeiras intenções dos discursos – ou ao menos dificulta que se chegue a elas. Essa linguagem bastante específica costumamos chamar de juridiquês.
O juridiquês, em especial aquele praticado nos corredores do castelinho, possui alguns “princípios norteadores”, como o Princípio da Necessidade, o da Adequação e o da Proporcionalidade. Em verdade, ao apagar das luzes e ao abafarem-se as vozes, ao que se viu, pode-se dispensar tal teoria dos princípios. De qualquer forma, para manter a tradição, passemos a sua descrição.
O princípio da Necessidade de utilização de eufemismos para toda e qualquer expressão que desestabilize o tom de um discurso é particularmente peculiar e perceptível externamente. Por exemplo, em juridiquês, quando se discorda frontalmente de uma posição – e eventualmente se acha que ela é uma grande besteira –, diz-se que “com máxima venia, diverge-se do brilhante posicionamento do eminente interlocutor”. Muitas vezes, dada a complexidade desta linguagem, precisamos ativar o modo “SAP” para compreendê-la, uma espécie de legenda para o português, como em algumas frases proferidas no Castelinho: “foram somente brincadeiras e elogios equivocadamente interpretados” – ASSÉDIO – ou “na faculdade de direito existe uma certa discriminação racial” – RACISMO – ou “houve um período de grande solidariedade entre senhores de engenho e escravos” – ESCRAVIDÃO – ou “mulheres não compreendem o instituto da preclusão e da coisa julgada” – MACHISMO.
Há, também, o princípio da utilização de termos específicos de forma adequada aos fins pretendidos, o qual justifica o uso de termos mais agressivos caso a finalidade seja manter intocado seu próprio ego. Podemos observá-lo, por exemplo, quando um professor – ao julgar que a avaliação feita pelos alunos acerca de sua didática, através de ferramenta anônima disponibilizada pela UFRGS, era fruto de “ataques virulentos” de pessoas “deformadas geneticamente” – envia um e-mail para a turma solicitando um desagravo formal. Também é possível presenciar este princípio quando outro professor, cujo relacionamento com a turma já estava desgastado em razão de discussões anteriores acerca de sua inassiduidade às aulas e da falta de didática, ao perceber que era gritante o desejo dele e da turma de encerrar a convivência, em reunião de departamento, negou-se a deixar de ministrar aulas para a turma, apenas para não dar o braço a torcer, permitindo que escapasse por entre os dedos a ameaça que fez de processar os alunos.
Por último, há ainda o Princípio da Proporcionalidade, o qual determina se o direcionamento ao destinatário do discurso será feito direta ou indiretamente. É necessário observar se as características do interlocutor são proporcionais ao grau de objetividade a ser utilizado e ao objetivo almejado. Por exemplo, quando postávamos no grupo da turma se “alguém tinha cadernos da disciplina”, na verdade, queríamos dizer “Marcela, Marina ou Bruna, alguma de vocês quer postar aqui seu caderno?”. Quando perguntávamos, nas redes sociais da turma, se alguém sabia das datas das provas das cadeiras, na verdade, queríamos dizer “Renan, por favor, nos salva”. Aliás, desde já vai nosso muito obrigado: vocês sempre respondiam.
Ao final, pode-se dizer que vimos professores que nos inspiraram – seja pelo exemplo do que ser ou do que não ser –, fomentaram nosso senso crítico, nos ensinaram a pensar e alimentaram nosso processo de construção de identidade ao longo desses anos, e estão aqui representados pelo nosso paraninfo, Luis Renato, nossa professora homenageada, Raquel Scalcon e o Professor Daniel. Vimos também servidores administrativos, terceirizadas e terceirizados do RU, da limpeza, da segurança, representados pela funcionária Rose, extremamente comprometidos em nos fornecer todo apoio disponível para completarmos essa jornada. Vimos o esforço de representantes discentes e de turma, bem como de membros do centro acadêmico, em representar nossos interesses, aqui presentes através do Renan, representante de turma e da Mari, presidente do CAAR.
Enfim, acima de tudo, aprendemos que é possível que cada um tenha ideias particulares do que julga que fará o mundo um lugar melhor. Percebemos que todos nós temos audácia e coragem para aumentar nossa força e modificar aquilo com o qual não concordamos. Nesse sentido, é gritante a gana da iniciativa estudantil, seja na forma de coletivos de luta, como o Dandara – Grupo de Empoderamento de Negras e Negros e como o Coletivo Feminista do Direito da UFRGS, seja através de projetos de extensão, como o SAJU, o Nedep, o AJHE e outros, de grupos de pesquisa, de grupos de estudo, do Centro Acadêmico, da representação discente e de turma, dentre outros instrumentos basicamente gestionados por estudantes e que dão real movimento ao castelinho.
A verdade é que, se voltássemos ao primeiro dia de aula, viveríamos tudo de novo. Ao olharmos para trás, pensamos com amor naqueles bixos amedrontados pelos seus veteranos no primeiro dia de aula. Vemos que cada experiência – boa ou ruim -; cada luta que travamos; cada desafio individual; cada dificuldade que se apresentou, bem como todo o amadurecimento intenso e acelerado dos últimos anos; todas as perguntas e respostas tão rapidamente mutáveis; todas as certezas desconstruídas e toda a confusão final, tudo, absolutamente tudo, nos foi essencial.
Do caos nascemos, cada pessoa de uma forma. Algumas mais audaciosas, outras mais comedidas. Mais corajosas ou mais prudentes, nos holofotes ou nos bastidores, todas, em sua própria forma de caminhar, trilharam e seguirão trilhando seus caminhos. O certo é cada um aqui, pelo motivo que for, vive a alegria desse aprendizado e o entusiasmo do fechamento dessa luta individual, eufóricos para que o day after traga tudo aquilo que ainda temos para viver.
Aliás, se na véspera do day after estamos aqui, bacharéis em direito, é porque recebemos carinho e apoio de nossos amigos e familiares, que tão generosamente dispensaram parte de seu tempo para nos doar força. Vocês foram essenciais em todos os sentidos e nos deram a parcela de subjetividade necessária para manter nosso caráter humano e emocional ante tanta racionalidade e objetividade jurídica. Seja aqueles presentes fisicamente aqui ou apenas em nossas mentes, por qualquer motivo, é importante que saibam que as contribuições de vocês serão eternas. O que vocês nos ensinaram não há faculdade no mundo que lecione e essas doações únicas são o que temos de mais precioso.
(créditos de revisão: Mariana Ghiorzzi de Albite Silva e Gerson Tadeu Astolfi Vivan)