Na sociedade capitalista, tudo é mercadoria, valor de troca que se realiza no mercado em permuta com seu equivalente em dinheiro. A força de trabalho, conjunto de capacidades físicas e mentais de cada um, também é mercadoria, cujo valor de uso é cedido mediante o pagamento de um salário pago por quem adquiriu o direito de uso dessas capacidades. Esse comprador pode ser um indivíduo ou uma empresa que disponha de uma quantia (capital) que possibilita a montagem de um estabelecimento produtivo de bens e/ou serviços. O vendedor da força de trabalho é um empregado.
As condições em que essa troca é feita expressam os resultados do confronto entre capital (compradores de força de trabalho) e trabalho (vendedores daquelas capacidades) na defesa de seus respectivos interesses e na configuração econômica, social e política da organização da produção social. Empregados assalariados são a maioria dos integrados a essa produção em sociedades de capitalismo maduro, mas tendem a ser uma categoria menos significativa em sociedades de capitalismo mais recente e periférico, nos quais a tendência é de comportar significativo contingente de trabalhadores sem contratos formalizados ou como trabalhadores independentes, autônomos e por conta própria. Esse é o caso do Brasil.
O traço recorrente a qualquer dessas situações é a necessidade de obter algum ganho em moeda que permita aos trabalhadores adquirirem o necessário para sua sobrevivência, ou seja, as mercadorias de que depende para tal. O dinheiro é a mediação de tudo.
Mas, além de ser a via pela qual cada um obtém os meios necessários à sobrevivência, o trabalho é também um fator de integração social, ainda que possa ser exaustivo, rotineiro, penoso, brutal e cuja finalidade seja estranha a quem o executa. Fazer parte de um grupo de pessoas envolvidas numa atividade comum, integradas num coletivo, possibilita a essas pessoas construírem as referências de sua própria existência e de seu lugar no mundo.
A exclusão de significativo contingente de pessoas da produção social significa problema que pode atingir grande magnitude num determinado contexto, além de efeitos nefastos no âmbito pessoal e familiar dos desempregados.
O filme O cachorro (Carlos Sorín, Argentina, 2004) aborda os problemas e dificuldade de Juan, na Argentina de Menen. Juan foi demitido do posto de gasolina em que trabalhava há anos e encontra dificuldades irremovíveis de encontrar outro emprego. Não tem nenhuma qualificação. Sua idade, 53 anos, é pouca para pretender a aposentadoria e não é mais jovem para disputar com vantagem uma nova colocação no mercado de trabalho. Essas dificuldades ficam evidentes quando recorre a uma agência pública que cadastra desempregados e os encaminha para outros postos de trabalho. A informação desinteressada da funcionária é que ele foi incluído no cadastro de desempregados e só.
Juan mora de favor na casa da filha, com o genro e os netos. Sente-se constrangido e envergonhado, pois a casa é pequena. Sente que sua presença desacomoda seus familiares e pesa no orçamento, pois com as facas artesanais que fabrica e vende com alguma dificuldade pouco pode contribuir para as despesas da casa.
Juan sente-se um excluído, sem lugar no mundo e um estorvo à família. Sua resignação é mais desesperança e desânimo.
Na estrada, ajuda uma jovem com problemas no seu carro, trabalho pelo qual recebe um cachorro como recompensa. Mas a filha não aceita o animal em casa. Juan aluga-o como cão de guarda num depósito, mas o animal foge. Juan o resgata e não sabe o que fazer com ele. Mas um encontro casual com um aficionado por cães daquela raça abre novas perspectivas de solucionar seus problemas. O cinófilo reconhece no animal uma excepcional qualidade genética que faz dele um potencial reprodutor. Para isso, o cão precisa de um rigoroso treinamento a fim de participar de desfiles. Depois de um árduo e prolongado treinamento, o cão está preparado. Participa e vence algumas provas, mas decepciona como reprodutor, rejeitando todas a fêmeas que lhe são oferecidas. Segundo diagnóstico do veterinário, o cão sofre de falta de libido, que é recuperada quando ele escapa de Juan e se acasala com uma fêmea de sua escolha, no fundo de uma olaria. As dificuldades de Juan estão resolvidas. A venda dos filhotes do cão poderão lhe proporcionar uma vida sem sobressaltos e sem carências.
A saga de Juan é a face dos problemas do desemprego e de seus efeitos: a exclusão do mundo para o qual foi moldado (o mundo do trabalho), provocando um profundo sentimento de abatimento e solidão; a perda da capacidade de prover seu próprio sustento, precisando depender da boa vontade da família, nem sempre muito generosa.
Quando o Estado não prove as necessidades da população desempregada, na inexistência de políticas sociais e laborais de amparo aos prejudicados pelas oscilações da economia, a solução dos problemas enfrentados por essa população tende a ser individualizada.
A dimensão pessoal dos problemas de Juan é o microcosmo da problemática do trabalho e as diferentes configurações que assume em cada contexto nacional. Juan é a Argentina de Menen e os efeitos das políticas neoliberais adotadas que desmontaram o que havia do Estado de bem estar.
Personagens do filme são emblemáticas na busca das soluções dos problemas, soluções que são sempre individuais.
A dimensão pessoal dos problemas de Juan é o microcosmo da problemática do trabalho e as diferentes configurações que assume em cada contexto nacional
A mulher do amigo de Juan vai trabalhar como diarista em casas de família, solução recorrente para mulheres sem qualificações profissionais dispensadas da economia formal. O emprego doméstico tem sido o desaguadouro do desemprego dessas mulheres com pouca qualificação para responder às demandas do mercado de trabalho. (No Brasil, entre 1993 e 2002, período marcado por baixo dinamismo econômico, o número de trabalhadores domésticos cresceu 31,2% e da população total ocupada, 17,4%). A amiga no bar faz-se passar por uma cantora árabe, exótica, pela mesma razão. O treinador do cão faz dessa atividade uma fonte de renda, ainda que pequena, que lhe possibilita sustentar sua família.
A hegemonia do ideário neoliberal e das práticas e políticas que sustenta implica em desvantagens para o polo do trabalho em âmbito mundial. Em cada contexto nacional específico, a dimensão e a profundidade de seus efeitos estão diretamente relacionados com a história das relações capital-trabalho e da capacidade que o trabalho teve e ainda continua a ter na defesa e conquista de políticas que lhe sejam favoráveis no confronto com o capital. Mas a onda quase avassaladora desse ideário e dessas políticas tem destruído, na maioria dos países, sejam desenvolvidos ou não, conquistas obtidas
A política do Estado mínimo tem efeitos negativos nos serviços sociais prestados à maioria da população, sempre os mais necessitados. As privatizações desses mesmos serviços, que passam a se orientar pelo lucro, tornam-nos inacessíveis para parte da população. Políticas de ajuste provocam perda de dinamismo econômico e resultam em aumento do desemprego. Esse aumento, considerado uma necessária restauração da taxa “natural” do exército de reserva, é fundamental para a recuperação da capacidade de investimento do empresariado, perdida em momentos anteriores, com as reivindicações salariais e pressões para o aumento dos gastos sociais por parte dos sindicatos, como destaca Perry Anderson (in Borón e Sader. Pós-neoliberalsimo. As políticas sociais e o Estado democrático. RJ: Paz e Terra,1995).
A redução ou extinção de recursos sociais propiciados pelo Estado e a delegação a cada um da responsabilidade de resolver os problemas daí advindos é a face mais perversa da ideologia neoliberal, expressa na concepção do mérito. Cada um é responsável pelo seu sucesso ou seu fracasso na acirrada competição no mundo do trabalho, no qual só os mais capazes, os mais aptos a responderem às demandas do mercado sairão vitoriosos. Nenhuma influência será considerada como condicionante do resultado dessa batalham, como a origem familiar, os recursos econômicos e sociais da família e seu círculo de relações, o acesso à educação, à cultura, à qualificação profissional.
Segundo a visão neoliberal, o indivíduo é o único responsável pela sua trajetória no mundo e ele está só.
Título: O cachorro
Ano: 2004
Duração: 97 min.
País: Argentina/Espanha
Diretores: Carlos Sorin
Elenco: Juan Villegas, Walter Donado, Rosa Valsecchi
Mais informações: IMDb
Trailer do filme (legendas em português):