De onde os privilegiados tiram a ideia de que ‘merecem’ mais? Lições do laboratório

Os ricos do mundo estão convencidos de que merecem sua riqueza. Que sua renda gigantesca reflete sua engenhosidade, seu “capital humano”, os riscos que eles (ou seus pais) assumiram, sua ética de trabalho, sua perspicácia, sua aplicação, até mesmo sua sorte. Os economistas (especialmente os membros da chamada Escola de Chicago, como Gary Becker) ajudam, estimulando as crenças egoístas dos poderosos e argumentando que a discriminação arbitrária na distribuição da riqueza e dos papéis sociais não pode sobreviver por muito tempo às pressões da concorrência (isto é, que, mais cedo ou mais tarde, as pessoas serão recompensadas proporcionalmente à sua contribuição para a sociedade). Já a maior parte de nós suspeita que isso seja claramente falso. Que a distribuição de poder e riqueza pode ser, e geralmente é, altamente arbitrária e independente de “produtividade marginal”, “correr riscos” ou, na verdade, de qualquer característica pessoal daqueles que chegam ao topo. Neste texto apresento um trabalho experimental que discute o último ponto: distribuições arbitrárias de papéis e riqueza não são apenas sustentáveis em ambientes competitivos, mas, de fato, são inevitáveis até – e a menos que – haja intervenções políticas para contê-las.

O experimento de laboratório central para este texto ocorreu há algum tempo e envolveu 640 voluntários. Revelou que hierarquias rígidas podem surgir mesmo entre pessoas que são, para todos os efeitos, idênticas. É claro que a discriminação não pode emergir a menos que haja pelo menos alguma característica distintiva (por exemplo, alguns são destros ou têm olhos verdes, alguns são homens enquanto outras são mulheres). Assim, para testar a hipótese de que a discriminação sistemática pode emergir quando os sujeitos parecem idênticos uns aos outros, o desenho experimental tornou impossível para um participante discernir algo que não fosse uma característica totalmente arbitrária do “outro”; um recurso comumente conhecido como não relacionado ao caráter, aplicação, inteligência, motivação ou habilidade da pessoa envolvida. Qual recurso? Simplesmente atribuímos, aleatoriamente, a cor Azul à metade dos nossos assuntos e a cor Vermelha à outra metade. Poderia tal atribuição de cor arbitrária semear convenções estáveis que discriminavam terrivelmente entre os Vermelhos e os Azuis; ou seja, pessoas que eram, de outro modo, indistinguíveis (e que sabiam que as atribuições de cor eram aleatórias e, portanto, sem sentido)? A resposta é, ao contrário de qualquer coisa que a teoria econômica possa explicar, um retumbante “sim”. [Clique aqui para o artigo acadêmico, publicado no The Economic Journal, relatando este experimento e aqui para um capítulo mais longo sobre o mesmo tópico, publicado recentemente neste livro. Clique também aqui para os slides da minha apresentação mais recente sobre este assunto.]

O que tudo isso significa? O que podemos aprender a partir dessas experiências de laboratório, sobre nossas sociedades? Há insights aqui que podem ajudar os ativistas políticos e organizações de direitos civis que lutam contra a discriminação sistemática? Abaixo, ofereço um breve resumo das descobertas empíricas e respondo a perguntas feitas por Nick Hadjigeorge sobre o significado político dessas questões para os ativistas dos direitos civis.

Insights do laboratório – em seis pontos

1 – Evidências experimentais mostram que a discriminação arbitrária em larga escala pode ser sustentável com base em alguma característica distintiva que todos sabem não depender de caráter pessoal, habilidade, agressão, QI, temperamento etc. Se pudermos reproduzir padrões rígidos de discriminação em uma hora, em um laboratório, então feministas, antirracistas e críticos das enormes desigualdades entre classes sociais têm fortes evidências de que é perfeitamente possível para as sociedades distribuir os bons papéis sociais (e a riqueza que emana deles) independentemente das virtudes pessoais que os homens brancos poderosos invocam para justificar suas riquezas e poder.

2 – Dada a sua estabilidade evolutiva, os padrões de discriminação tornam-se institucionalizados nas sociedades humanas porque as pessoas começam a acreditar que merecem o que estão obtendo – ou o que não estão obtendo (como parte da distribuição que resulta da evolução das convenções discriminatórias). A ideologia do merecimento, em outras palavras, segue a mesma linha das distribuições arbitrárias de papéis sociais e renda.

3 – Membros de grupos privilegiados e desfavorecidos se comportam de maneira diferente com base nessa dinâmica, esperam que o “outro” grupo se comporte de maneira diferente e, mais importante, permitem que suas “expectativas” se tornem mais do que previsões: tornam-se expectativas éticas (por exemplo, as favorecidas tendem a acreditar que é certo que eles recebam mais do que os desfavorecidos e vice-versa).

4 – As pessoas privilegiadas se envolvem mais em comportamento hostil umas com as outras e sentem-se merecedoras de seus ganhos.

5 – Os membros desfavorecidos aprenderam a esperar menos e a desenvolver uma maior capacidade de agir coletiva e cooperativamente contra a lógica da clandestinidade. Como resultado, mesmo que isso não seja necessariamente o que os motiva, eles conseguem recuperar algumas das perdas por estarem em desvantagem (em suas transações com o grupo favorecido), ao cooperar uns com os outros.

6 – A explicação de como o poder real evolui – e o que o torna sustentável – pode ser encontrada na mente e nas crenças da maioria dos desfavorecidos que sucumbem à crença ideológica de que merecem menos do que os privilegiados.

O que tudo isso significa para o movimento dos direitos civis?

Nick Hadjigeorge: Sua análise começou com observações empíricas de discriminação entre populações de aves, antes que você passasse ao comportamento humano em laboratório. O que mais pode dizer sobre o processo de institucionalização que observamos nas sociedades humanas?

Yanis Varoufakis: Os seres humanos têm uma capacidade que falta aos animais: a capacidade de racionalizar ex post e de desenvolver crenças morais (ou normativas). Enquanto nas populações de aves a discriminação é baseada apenas em um mecanismo replicador darwiniano (que assegura que o conflito é minimizado pela divisão das aves entre aquelas programadas para agir como falcões e aquelas que se comportam como pombos), as sociedades humanas estão em uma ordem de magnitude mais complexa. Como na “república animal”, também nas sociedades humanas os jogos socioeconômicos que jogamos (também conhecidos como capitalismo patriarcal e racista) são bastante primitivos e conflituosos, dando origem a divisões sociais entre grupos privilegiados e desfavorecidos. A diferença é que os humanos questionam as convenções. Eles precisam de razões para aceitá-las. Eles então as criam sub-repticiamente, secretamente, subconscientemente. Eles convertem a observação “isto é o que estou ganhando” na crença “isto é o que mereço”. Quando as crenças proféticas adquirem um verniz de ética, se solidificam e a ordem social é estabilizada. Mas, ao mesmo tempo, uma força oposta está em ação; uma força subversiva que se assemelha às mutações na biologia. Essas mutações são atos de rebeldia (por exemplo, um Spartacus ou um Malcolm X) que desestabilizam a ordem social e a ideologia dominantes. É através desta disputa entre a dinâmica adaptável, conservadora, replicadora e a rebeldia subversiva das mutações políticas que a história humana evolui. As instituições da escravidão, do patriarcado, do racismo, do capitalismo etc., surgiram dessa forma. E todas foram, também dessa forma, subvertidas.

Nick Hadjigeorge: Sua impressão é que seus sujeitos experimentais se comportam de acordo com a socialização, ou são resultado de programação cerebral inata, como no exemplo das aves?

Yanis Varoufakis: O único aspecto inato e programado desse processo de “socialização” tem a ver com nossa necessidade, como humanos, de racionalizar; de ter razões para aceitar as convenções que regulam nosso comportamento. O que David Hume descreve em seu Tratado da Natureza Humana como a conversão sub-reptícia de um “é” em um “deve ser”. Esta “sede de razão” é a fonte da ideologia que solidifica os padrões comportamentais de discriminação e cooperação, mas também da ideologia da rebelião, subversão e resistência.

Nick Hadjigeorge: Membros privilegiados se sentem merecedores de seus ganhos. O que sentem os membros desfavorecidos? Sentem-se injustiçados?

Yanis Varoufakis: Sim e não. Os desfavorecidos experimentam uma mistura de emoções. Em parte um sentimento de injustiça, em parte um sentimento de orgulho por não ser explorador, em parte uma indignação contra os privilegiados, mas também certa condenação moral de outras pessoas desfavorecidas que são “arrogantes”, que pensam que merecem mais e que procuram subverter a vantagem dos favorecidos. Afinal, os maiores opositores das feministas foram mulheres (que proclamaram que as mulheres deveriam ficar em casa) e as forças policiais que atacaram os manifestantes antiapartheid na África do Sul eram compostas, em sua maioria, por negros…

Nick Hadjigeorge: Qual a sua opinião sobre o movimento pelos direitos civis? Seus membros utilizaram com sucesso seu poder enquanto membros do grupo desfavorecido?

Yanis Varoufakis: Sim. Em linhas gerais, a segunda grande diferença entre sociedades humanas e populações de aves estratificadas (além de nossa capacidade de racionalizar e desenvolver crenças normativas) é o fato de que os seres humanos, possivelmente por cortesia do Logos (fala, linguagem e razão), tendem a correlacionar nossas mutações. Se você pensar as mutações como atos individuais de resistência contra as convenções discriminatórias estabelecidas, a política é o que acontece quando esses indivíduos tentam correlacionar suas mutações, dando-lhes assim muito mais poder para derrubar as convenções atuais. Na década de 1960, o Movimento dos Direitos Civis fez isso com grande sucesso, especialmente tendo recrutado para a coalizão membros subversivos do grupo privilegiado (por exemplo, brancos que compartilhavam os ônibus com negros). Se o movimento fracassou em alguma coisa, foi em não ter dado uma resposta à perda maciça de empregos nas fábricas depois de 1973, uma perda que minou a grande maioria dos americanos desfavorecidos. Mas essa é outra história…

Nick Hadjigeorge: Olhando para o futuro, como você vê os atuais movimentos de desfavorecidos que exercem seu poder coletivo?

Yanis Varoufakis: É dever histórico das vítimas de discriminação arbitrária contestá-la com unhas e dentes. Também é inevitável que continuem tentando, apesar das sereias que se esforçam em mantê-las em seus sofás, coladas à ‘caixa de idiotas’, ou mergulhá-las em uma nuvem de consumismo irracional, barato e de plástico, em um contexto de insegurança econômica. A má notícia é que, desde a década de 1970, a base econômica em que se sustentava o movimento pelos direitos civis tornou-se cada vez mais frágil. A crise de 2008 deu alguma esperança de que os despossuídos se sentiriam encorajados e, através do Movimento Occupy, poderiam recuperar parte do nível moral nessa luta sem fim. Ainda não se sabe o resultado disso tudo. Mas há boas notícias: enquanto houver padrões de discriminação irracionais e múltiplos, o espírito humano produzirá sérios desafios a eles e, assim, manterá a chama viva.

Nick Hadjigeorge: O seu modelo/pesquisa da teoria dos jogos fornece algum insight sobre como esses grupos devem se comportar?

Yanis Varoufakis:Não. Simplesmente capacita-os: com a demonstração de que a discriminação que enfrentam pode ser tão idiota quanto sustentável; provando que o fato de que a discriminação, a desigualdade e a exploração sejam galopantes em todos os lugares não é sinal de que haja alguma razão valiosa por trás da discriminação, da desigualdade e da exploração; com evidências de que, por mais que as normas e práticas discriminatórias possam parecer sustentáveis, elas podem desmoronar e desaparecer quando é exposta sua dependência de falsas crenças que se assemelham a uma superstição que serve aos interesses de uma pequena minoria.

Cabe à resistência e aos grupos dos Direitos Civis trabalhar e se organizar contra padrões discriminatórios, e subverter a “capa” ideológica destes padrões – e a nós cabe apoiá-los.

Yanis Varoufakis é um economista, blogger e político grego membro do partido SYRIZA. Foi ministro das Finanças do Governo Tsipras em 2015.

FonteCarta Maior

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