Da porta para dentro

Servilismo doméstico é uma dominação oculta, que subjuga e desumaniza a mulher

“Naquela altura nem se punha a hipótese de desobedecer ou contrariar. (…) Eu interiorizava esse sofrimento para mim mas… tomar qualquer atitude de rebeldia… nem pensar. Não me passava pela cabeça. Sofria muito”. Na história da vida privada permanece oculta uma figura feminina central: a trabalhadora doméstica. Relatos como o de Amélia Torcato sobre sua experiência na década de 1960 em Portugal trazem à tona o passado de mulheres cuja vida foi marcada pela pobreza e pelo servilismo no lar.

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Gravura de Thierry Fréres descreve a sociedade colonial brasileira em 1835. Imagem: Fundação Biblioteca Nacional

As criadas de servir são ainda hoje associadas à sujidade no corpo e na fala, pela maledicência, inveja, incúria ou amoralidade. Ainda que do seu corpo saia o esforço para instaurar uma ordem de limpeza e asseio, ele é apenas instrumento e via, não pode associar-se a uma obra ou a um produto estável e reconhecível. Este eficaz dispositivo de dominação dificulta o estudo das trabalhadoras domésticas a partir dos limites a elas impostos, das condições de habitação oferecidas, do vestuário e da alimentação proporcionados, dos códigos de relacionamento com os filhos e com a família que as emprega. Sua condição servil tem impacto na vida pessoal, na possibilidade de escolher amigos, de amar, no direito de propriedade sobre objetos pessoais ou sobre a correspondência.

Graças à progressiva validação científica das fontes orais, a memória de Amélia e outros testemunhos ajudam a reconstituir sua história – e ao fazê-lo, reconstituímos a nossa história. Significa valorizar a capacidade reflexiva dos anônimos, como escreveu Peter Burke: “não pode haver história social sem história das ideias, desde que esta frase seja entendida como a história de todas as ideias em vez de a história dos pensadores mais originais de uma determinada época”. A inclusão na história contemporânea de um olhar sobre os regimes de servilismo doméstico é um exercício de desocultação necessário, porque a sociedade luso-brasileira transformou a figura da criada em um anátema. A memória social ocultou o fato de estarmos perante uma massa de trabalhadores – análoga aos regimes de dominação ligados ao tráfico e à escravatura – preferindo uma síntese do seu significado a partir de dimensões sexualizadas da sua ação. Ainda sob o império do direito de punição e proteção dos mais fracos, esta foi uma condição profissional historicamente sujeita a enorme vulnerabilidade.

E continua sendo. A servilidade doméstica não colapsou. Ao contrário, na maior parte dos países ocidentais ela cresceu, como na Itália, na Espanha e na Grécia. Se até pouco tempo atrás as urbes se alimentavam de migrações internas do campo para a cidade, hoje essas trabalhadoras são o fruto mais exposto das novas migrações em escala global. Trata-se de uma geografia que não pode deixar de ser interpretada à luz de um novo-colonialismo entre norte/sul e Ocidente/Oriente. Afloram novas formas de servidão, reproduzindo desigualdades de gênero, desigualdades salariais, racismo e práticas laborais ocultadas pelos ambientes familiares sofisticados dos indivíduos que recrutam novas servas. Na pior versão, o trabalho doméstico representa o uso de um indivíduo para aumentar e expor prosperidade e status familiar: é como um objeto de luxo em forma humana.

Não é fácil resumir a maneira como os movimentos de emancipação feminina se relacionaram historicamente com a figura da trabalhadora doméstica. A princípio, teriam uma bandeira natural de protesto pela dignificação dessa forma de trabalho. No entanto, essa bandeira não foi levantada vezes suficientes. Uma das explicações para a ausência de verdadeiro combate nos discursos feministas pela defesa das trabalhadoras domésticas é que a emancipação da mulher de classe média e classe média-alta dependia da contratação de uma outra mulher para assumir o governo e o cuidado da casa. Nem sempre essa classe média esteve disponível para renegociar formas de exploração, até porque os seus recursos eram escassos e, em contraponto, muito altas (e legítimas) as aspirações de mobilidade social. Esta é uma das questões que trazem mais incômodo às correntes feministas. Mas não a todas: muitas vezes há um efeito de “naturalização” da mulher “feminista” como empregadora doméstica, enquanto para outras mulheres existe uma contradição absoluta nessa condição – seu combate deveria ser deslocado para a defesa efetiva de uma partilha das tarefas domésticas pelo cônjuge e/ou corresidentes.

Cena do filme Histórias Cruzadas (2011) sobre a vida, em 1960, das domésticas norte-americanas. Fotografia: Divulgação
Cena do filme Histórias Cruzadas (2011) sobre a vida, em 1960, das domésticas norte-americanas. Fotografia: Divulgação

Para que não se tornem seres fantasmáticos, é imperativo conferir às trabalhadoras domésticas o direito à existência e à história, escavado na memória e no cotidiano mais próximo. Produções cinematográficas e televisivas têm colaborado neste sentido. É crescente o número de obras focadas na reconstituição de histórias entre cidadãos e patrões, trazendo visibilidade à história da servidão e do servilismo no trabalho doméstico. Entre 2011 e 2013, foram indicados ao Oscar filmes como Histórias Cruzadas (Tate Taylor), Django Livre (Quentin Tarantino) e 12 anos de escravidão (Steve McQueen). Na Espanha, a série Grande Hotel teve aclamação imediata. Em Portugal, a exibição do documentário brasileiro Doméstica, de Gabriel Mascaro, gerou diversos debates sobre as diferenças no trabalho doméstico nos dois países.

Qual é o significado dessa retomada de cenários de escravatura, servidão e servilismo em produções para a cultura de massa? São exercícios de revisitação das condições de trabalho dos subalternos, ou sinais de que estas formas de servidão recrudescem no mundo atual? Haverá alguma nostalgia subjacente à produção desses discursos, que depressa se tornam objetos de culto? Que mensagens os enredos transmitem sobre a história da subalternidade feminina?

Não há respostas fáceis. Em muitas produções pode haver alguma suavização ou sofisticação da violência e da dominação. São geralmente fascinadas pelos cenários da grande aristocracia e dos grandes proprietários. Devolvem-nos à memória a arquitetura de palácios e palacetes cuja beleza não sobreviveria se não fosse o trabalho contínuo de dezenas de serviçais. Ao mesmo tempo, é escassa a produção de histórias em torno daquele trabalho doméstico urbano, verdadeiramente massificado nas sociedades contemporâneas, em que reina a invisibilidade e a despersonalização.

Há uma interpretação que associa o reavivamento do servilismo doméstico à paridade de trabalho qualificado entre homem e mulher: profissionais de cuidado dos filhos e das condições de conforto e limpeza estariam substituindo os cônjuges nas funções do lar. Seja como for, a intensificação da procura de “serviços pessoais” associados a estilos de vida é uma resposta à criação de novos patamares de diferenciação e de um conceito de “qualidade de vida” que as classes endinheiradas reclamam para si mesmas. Enquanto isso, muitos relatos de opressão, desespero e desumanidade continuam sendo varridos para baixo do tapete.

Profissão: doméstica

Há cerca de dois anos, o Brasil ganhou novo enquadramento legal para o trabalho doméstico: a emenda constitucional 72/2013, que formaliza a profissão, é um passo para a dignificação desta forma de trabalho.

Tanto em Portugal quanto no Brasil, o entendimento da “serviçal” enquanto “membro da família” desprotegeu gravemente essa trabalhadora. Ela (ou ele) era um “quase” membro da família. Enquanto lhe eram imputados deveres de trabalhadora, a família empregadora tutelava o seu crescimento, não apenas físico como intelectual e emocional. Essa dupla acepção do empregador como patrão e tutor paralisou, ou pelo menos atrasou, a conquista de direitos. O estatuto especial deste labor, travado na esfera privada, fez com que muitas trabalhadoras fossem exploradas. Grande parte do contingente tinha contato frágil com o espaço público, o que afetou gravemente sua capacidade reivindicativa e sua possibilidade associativa.

A Constituição de 1988 discriminava o trabalho doméstico como de segunda categoria. Com a emenda 72/2013, instituiu-se a jornada máxima de 44 horas semanais e não superior a oito horas diárias, o pagamento de hora extra e a institucionalização do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Mas muitas lacunas continuam por preencher. Entre as principais recomendações da Convenção Internacional sobre o Trabalho Decente para Trabalhadores Domésticos (2011), estão o estabelecimento de uma idade mínima para o trabalho, o direito de reserva dos documentos pessoais, a liberdade para decidir moradia e a decisão livre de acompanhar os empregadores no período de férias.

O maior receio é que a alteração constitucional não seja cumprida pelos empregadores. A realidade social já deu provas suficientes de que prevalece enorme distância entre o discurso e a prática, desfavorecendo os mais fracos e colocando em evidência assimetrias geográficas e etnoculturais.

Inês Brasão é investigadora no Instituto Português de Relações Internacionais na Universidade Nova de Lisboa e professora no Instituto Politécnico de Leiria.

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