A gratuidade de justiça tem sofrido sucessivos ataques por meio de novas leis aprovadas recentemente pelo congresso nacional, notadamente a reforma trabalhista e o novo código de processo civil. Quanto à reforma trabalhista, assim ela dispôs:
Art. 789, §3º: É facultado aos juízes, órgãos julgadores e presidentes dos tribunais do trabalho de qualquer instância conceder, a requerimento ou de ofício, o benefício da justiça gratuita, inclusive quanto a traslados e instrumentos, àqueles que perceberem salário igual ou inferior a 40% (quarenta por cento) do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.
Nesse caso, há assegurado o direito, portanto, para quem tem remuneração na monta de R$ 2.258,32 em 2018, isto é, pouco acima de 2 salários mínimos nacionais. As custas judiciais do processo e os honorários de sucumbência (que são os valores pagos pela parte vencida para os advogados da parte vencedora) podem, entretanto, facilmente chegar a monta em que seriam necessários vários meses dessa remuneração para serem adimplidos, caracterizando verdadeiro excesso e afetando seriamente as condições de vida e sustento dos trabalhadores.
Não à toa os Tribunais de Justiça do país vêm convergindo nos últimos anos para definir como parâmetro para a concessão de gratuidade de justiça a monta de 5 salários mínimos, com alguns entendimentos isolados que ampliam a até 10 salários mínimos.
O novo Código de Processo Civil, por sua vez, assim dispõe:
Art. 98, § 5º: A gratuidade poderá ser concedida em relação a algum ou a todos os atos processuais, ou consistir na redução percentual de despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento.
§ 6º: Conforme o caso, o juiz poderá conceder direito ao parcelamento de despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento.
A leitura desses incisos pode indicar, em um primeiro momento, a expansão de direitos para fins de permitir a redução da despesa ou o parcelamento dela para quem não teria direito à concessão da gratuidade de justiça, mas que a teria concedida para algum determinado ato. Ocorre que a interpretação que alguns Juízos estão fazendo é que, mesmo para aquelas pessoas que até então tinham pacificamente direito a esse benefício, por terem remuneração inferior a 5 salários mínimos, agora passaram a poder pagar as despesas judiciais, bastando para tanto que se conceda o parcelamento delas.
Essa interpretação restritiva de direitos fundamentais, entretanto, não está correta, haja vista que ela só pode ser realizada se de maneira expressa na legislação, o que não é o caso.
Em que pese as leis sejam direcionadas a diferentes ramos da justiça, ambas são resultado de um mesmo período temporal histórico, encarnando essa onda de avanço de propostas que têm como objetivo a retirada de direitos básicos e o esfacelamento de garantias constitucionais.
Assim, o que se está diante é de tentativa fulminar o direito fundamental de acesso à justiça ao exigir condição de miserabilidade para a concessão da gratuidade de justiça, haja vista que não há mais espaço no Constitucionalismo contemporâneo para que não seja defendido o acesso à justiça como um dos direitos mais primordiais que uma sociedade pode ter assegurado, na esteira dos consagrados pensamentos de Mauro Cappelleti, J.J. Canotilho e Boaventura de Sousa Santos, e, portanto, a sua limitação representa ofensa grave ao Estado Democrático de Direito.
Paira ainda de maneira irresponsável mito desrespeitoso de que seria a concessão de gratuidade que induziria ao ingresso aventureiro de demandas, sendo mito por justamente não existir para esse raciocínio qualquer estudo científico sério que o ratifique e, especialmente, caso se verificasse esse comportamento nele, se esse impacto é estatisticamente relevante. Há de se destacar, inclusive, que as maiores resistências a ações de entendimento pacificado na Justiça brasileira individualmente identificável têm como litigantes em algum dos polos, além do próprio Estado, bancos e companhias telefônicas, tendo essas duas categorias sem gratuidade de custas, conforme demonstra pesquisa promovida pelo CNJ[1].
Ademais, vincular o pagamento de custas judiciais à seriedade da busca por direito atingido escalona as pessoas por sua capacidade contributiva e exige sacrifícios além do que devem ser por elas suportados. O Direito, nessa esteira, perde sua primordial função de pacificação social e se torna monopólio das camadas sociais capazes de suportar os custos de suas reivindicações.
Ignora ainda que todo processo judicial custa tempo para o jurisdicionado e para os advogados, na esteira da recente doutrina acerca da perda do tempo útil e, portanto, é cientificamente equivocada qualquer afirmativa de que a improcedência da ação para litigantes com gratuidade de justiça implicaria em ausência de custos para eles, salvo discriminatório pensamento de que o seu tempo não tem valor por terem baixa renda.
Não é conferido aos congressistas e juristas, em um Estado Democrático de Direito, realizar afirmações que aprofundam estigmatizações desrespeitosas, por vezes ecoadas inconsequentemente por parcela da mídia, e que ao fim culpam a vítima por buscar o reconhecimento de seu Direito na competente esfera: o judiciário. Assim, tratando-se de mera projeção de hipótese, ela não pode integrar o fundamento de uma decisão judicial, por ausência de capacidade de verificação pelas partes de seu pressuposto de existência.
A criação de barreiras ao efetivo exercício do acesso à justiça torna como efeito o temor de ingresso ao Judiciário, estancando artificialmente demandas, típico de Estados ditatoriais ou totalitários, ao vislumbrar difusamente a população de que ela poderá sofrer consequências-sanções pelo ajuizamento de ações judiciais, ainda que, por vezes, a improcedência delas seja por exercício hermenêutico ou por incapacidade de produção de provas mais robustas ao seu pedido.
Se a pessoa é economicamente vulnerável, o é em sua totalidade, não havendo exceção mesmo para o poder judiciário. E uma das razões dessa presunção é justamente a impossibilidade de se auferir a capacidade contributiva do jurisdicionado quando sua remuneração é de poucos salários mínimos, os quais, presumivelmente, são consumidos para a garantia de seu mínimo existencial, como moradia, saúde, alimentação e vestuário.
Na contundente obra de Cappelletti[2], nos Estados Nacionais dos séculos dezoito e dezenove era onde se caracterizava que “afastar a ‘pobreza no sentido legal’ – a incapacidade que muitas pessoas têm de utilizar plenamente a justiça e suas instituições – não era preocupação do Estado”. Desta época até os dias de hoje, e notadamente com o advento em 1950 da lei 1.060, o Estado brasileiro assumiu sério e responsável compromisso de ter como norte a universalização do acesso à justiça, sendo trágica tentativa de supressão de direitos fundamentais o perigoso pensamento legislativo-judiciário ora exposto, regredindo a sociedade para questões que se imaginavam superadas há 70 anos.
[1] 100 Maiores litigantes. Disponível em < http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/pesquisa_100_maiores_litigantes.pdf>. Acesso em 05 jun de 2018.
[2] CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 9.
Leonardo Serrat de O. Ramos
OAB/RS 86.423