Habituamos a dizer que “a discussão sobre assédio moral é nova. O fenômeno é velho”. Tão velho quanto o trabalho, isto é, quanto o homem, infelizmente. No Brasil colônia, índios e negros foram sistematicamente assediados, ou melhor, humilhados por colonizadores que, de certa forma, julgavam-se superiores e aproveitavam-se dessas supostas superioridades militar, cultural e econômica para impingir-lhes sua visão de mundo, sua religião e seus costumes. Não raro esse procedimento, constrangedor sob vários aspectos, vinha acompanhado de outro que hoje denominamos assédio sexual, ou seja, constranger-se uma pessoa do sexo oposto ou do mesmo sexo a manter qualquer tipo de prática sexual sem que essa verdadeiramente o deseje.
Relembrando as ideias de Gilberto Freyre, em sua obra clássica Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal (1973), as relações entre brancos e “raças de cor” foram, no Brasil, condicionadas bilateralmente – de um lado pela monocultura latifundiária (o cultivo de cana-de- açúcar) no que diz respeito ao sistema de produção econômica; e de outro, pelo sistema sócio-familiar de cunho patriarcal, que se caracterizava pela escassez de mulheres brancas na colônia. Essa monocultura açucareira acabou impossibilitando a existência de uma policultura e de uma pecuária que pudessem se instalar ao redor dos engenhos, suprindo-lhes, inclusive, as carências alimentares. A criação de gado deslocou-se para o sertão, e a casa-grande adquiriu características essencialmente feudais – senhores de engenho, em sua maior parte patriarcais e devassos, que dominavam do alto de suas moradias, escravos, lavradores e agregados, com mão-de-ferro.
Considerando a atual sociedade brasileira nos moldes da escravocrata, pensamos que a humilhação no trabalho, ou o assédio moral, sempre existiu, historicamente falando, nas mais diferentes formas. Humilhação esta embasada no próprio sistema macroeconômico, que, em seu processo disciplinar, favorece o aparecimento dessa forma de violência, em que o superior hierárquico detém certo poder sobre seu subordinado. Novas tecnologias são implementadas nas empresas, obrigando o trabalhador a adaptar-se rapidamente a elas e impondo um novo perfil profissional “tecnicizado”. Fruto de um processo cada vez mais intenso de globalização, de automação fabril, de informatização nos serviços e de agilização nos processos, a hipercompetitividade é um fenômeno recente, que vem chegando ao Brasil e, efetivamente, estimula a instrumentalização do outro.
A concepção neoliberal legitima uma ampla reestruturação produtiva, onde os salários sofrem cada vez mais reduções e a educação emerge como “salvadora” e principal ferramenta da atualização, o trabalho torna-se cada vez mais precário e seletivo. O Estado vem, mediante uma ideologia neoliberal, retirar e diminuir benefícios e direitos do trabalhador, modificando a relação capital-trabalho; surgem, então, novas relações, como o contrato de trabalho por tempo determinado e várias formas de terceirização, que geram, desse modo, o subemprego e o trabalho informal, novas ameaças ao trabalhador, que antes tinha a garantia de alguns direitos historicamente consolidados.
Mediante discursos de cooperação e de trabalho em equipe, consultores organizacionais acabam por perpetuar elementos antagônicos: a necessidade da cooperação em equipe e a competição pela aquisição e manutenção de um posto de trabalho. Essa hiper competitividade não seria em si mesma uma forma de violência? Uma guerra, como bem coloca Christophe Dejours em A banalização da injustiça social (2001), onde o fundamental não é o equipamento militar, mas o desenvolvimento da competitividade; em que o fim pode justificar os meios, mediante um atropelamento da ética, da própria dignidade humana.
Roberto Heloani é Psicólogo (PUC/SP) e Bacharel em Ciências Jurídicas (USP). Professor Titular na Faculdade de Educação e no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas(UNICAMP). Conveniado junto à Université Paris-X-Nanterre, Laboratoire Genre, Travail et Mobilités (GTM).
Fonte: Revista Direitos, Trabalho e Política Social, Cuiabá, v. 2, n. 2, p. 29-42, jan./jun. 2016.