A equipe econômica do governo de Jair Bolsonaro (PSL) planeja enviar em fevereiro uma proposta consolidada de reforma da Previdência ao Congresso, segundo o novo ministro da Economia, Paulo Guedes.
Ao que tudo indica, no entanto, os militares devem ficar de fora da reforma – ou ter regras diferentes. O novo comandante do Exército, general Edson Pujol, por exemplo, disse que as Forças Armadas não devem ser incluídas na reforma, e o novo dirigente da Marinha defendeu o sistema diferenciado de aposentadoria militar.
O ministro-chefe da Secretaria de Governo, Carlos Alberto dos Santos Cruz, também já defendeu essa posição publicamente.
Além do presidente – que é capitão reformado do Exército – e do vice, o general Hamilton Mourão, o alto escalão do governo Bolsonaro tem seis cargos ocupados por militares.
A reforma dos sistemas de aposentaria no Brasil é considerada um tema essencial para o governo, sem a qual será difícil sanar as contas públicas. E a inclusão ou não dos militares na mudança tem sido tema polêmico desde o governo anterior, quando o presidente Michel Temer excluiu os militares de sua proposta de reforma.
Mas afinal, quais diferenças entre a aposentadoria dos militares e dos civis?
Crescimento da dívida
Entre 2017 e 2018, o déficit de gastos com seguridade social dos militares fora da ativa subiu mais que o do INSS e mais que o sistema de servidores públicos, de acordo com dados oficiais.
O rombo com a aposentadoria dos militares foi de 35,9 bilhões para 40,54% bilhões (até novembro de 2018), um aumento de 12,5%. O déficit para 2019 está projetado em R$ 43,3 bilhões, de acordo com dados da proposta orçamentária para esse ano. Esse valor é 47,7% dos R$ 90 bilhões de déficit previdenciário do setor público.
Enquanto isso, o déficit do INSS cresceu 7,4% entre 2017 e 2018, e o dos funcionário públicos da União cresceu 5,22% no mesmo período.
O Ministério da Defesa afirma que os valores referentes aos militares inativos não se tratam de “despesa previdenciária”. Portanto, o gasto projetado de R$ 43,3 bilhões não pode ser entendido como “déficit previdenciário”.
A média de valores das aposentadorias e os tetos também são diferentes.
Militares reformados e da reserva ganham em média R$ 13,7 mil por mês. Funcionários públicos da União ganham em média R$ 9 mil e quem se aposenta pelo INSS custa em média R$ 1,8 mil por mês para a previdência – com grandes discrepâncias entre quem recebe mais e quem recebe menos.
Na Previdência Social, para trabalhadores do setor privado, o teto atual da aposentadoria é de R$ 5.645. Já um militar que vai para a reserva não possui um limite máximo para os valores recebidos. Em tese, ele está sujeito ao teto constitucional, equivalente ao salário de ministros do STF, reajustado recentemente para R$ 39,3 mil.
Contribuição
Os militares brasileiros não estão vinculados à Previdência Social (o regime RGPS – Regime Geral de Previdência Social-, administrado pelo INSS) nem ao sistema previdenciário próprio dos funcionários públicos, o RPPS (Regime Próprio de Previdência Social).
Eles têm um sistema próprio de seguridade após saírem da ativa, e as muitas diferenças entre os sistema militar e os sistemas de previdência civil são resultado de uma grande diferença conceitual.
O entendimento jurídico que se tem em relação à saída dos militares da ativa, hoje, é que eles na verdade não se aposentam, passam para a reserva e, a partir de certa idade, são reformados, explica o professor Luís Eduardo Afonso, especialista em previdência da USP (Universidade de São Paulo).
Na reserva, eles podem ser chamados em caso de guerra – o que na prática não costuma acontecer, já que o Brasil não convoca reservistas para um conflito desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Então, o que o militar recebe tecnicamente não é entendido como um benefício previdenciário, é entendido como um salário – mesmo que na prática ele esteja inativo. Por isso, os militares na ativa não fazem contribuições para suas aposentadorias, apenas para pensões, que vão para dependentes em caso de infortúnios.
“Na prática, o que acontece é que toda a sociedade está pagando pela aposentadoria dos militares. É uma alocação de recursos que não é adequada”, afirma Luís Eduardo Afonso.
“Acho que é algo que a gente precisa repensar, já que estamos discutindo benefícios e custos para todos os setores da sociedade.”
A contribuição de um civil para o INSS é de 11% do salário bruto.
Já a única contribuição feita por militares, para pensões, é de 7,5% – que pode subir para 9% se o militar tiver ingressado antes de 2001 e quiser manter o benefício de pensão vitalícia para filhas não casadas.
Só o Exército tinha, no início do ano, mais de 67.600 filhas de militares recebendo um total de R$ 407 milhões por mês – o que dá um valor de mais de R$ 5 bilhões por ano. A Aeronáutica e a Marinha não divulgam os valores, apesar de se tratarem de dados públicos. No total, são mais de 110 mil filhas de militares recebendo pensões.
O Ministério da Defesa afirma que a contribuição para pensões é feita “desde o início da carreira até o falecimento”, “sem que haja qualquer tipo de contribuição patronal da União”.
No entanto, ela não é suficiente para cobrir todas as despesas com pensões – devem ser gastos R$ 21,2 bilhões com as pensões em 2019, segundo a pasta. Desse valor, R$ 3,2 bilhões serão cobertos pelas contribuições, deixando um déficit de R$ 18 bilhões.
Carreira diferente
A lógica por trás da discrepância é que a carreira militar requer condições especiais, já que a categoria tem algumas restrições.
Enquanto estão na ativa, militares não têm direito a greve nem a horas extras e não recolhem FGTS, além de não terem direito a adicionais noturnos e de periculosidade.
“Obviamente, há diferenças. É uma carreira com muitas especificidades, com mais riscos, em que, se a pessoa sair, as condições são diferentes”, explica o professor Luís Eduardo Afonso.
No entanto, segundo Afonso e outros especialistas em previdência, os benefícios para os militares aposentados no Brasil acabam pesando muito mais nas contas e ultrapassando os concedidos em outros países, como o Reino Unido e os Estados Unidos.
“A diferença entre a previdência dos militares e o setor privado [qualquer pessoa que aposente pela Previdêncial Social] no Brasil é muito grande e muito diferente de outros países”, afirma o professor de direito Jorge Cavalcanti Boucinhas, da Escola de Administração de Empresas da FGV. “A necessidade de levar em consideração as especificidades do serviço militar não pode ser usada para justificar privilégios.”
“É questão conceitual: todos os países estão envelhecendo e isso nos obriga a uma preparação e exige um esforço maior de custeio de toda sociedade – incluindo os militares”, afirma Afonso. “E isso não significa deixar de levar em consideração as peculiaridades da carreira.”
A questão da idade
A legislação atual permite que os militares brasileiros se aposentem com salário integral após 30 anos de serviço, sem idade mínima.
No setor público a idade mínima é de 55 anos para mulheres e 60 para homens.
Hoje, não há idade mínima para quem se aposenta por tempo de contribuição no INSS. Na reforma da Previdência proposta por Temer, se estabeleceria um limite mínimo de 65 anos para homens e 62 para mulheres – tanto Paulo Guedes quanto Mourão já demonstraram concordar com essa idade, embora o presidente já tenha falado em limites menores.
“Temos um sistema previdenciário que gera muitas desigualdades. E para alguns regimes, a Previdência é muito generosa, permitindo aposentadorias com valores muito elevados e idade relativamente baixa”, afirma o professor Luís Eduardo Afonso.
Em um relatório de 2017, o TCU (Tribunal de Contas da União) afirma que mais da metade (55%) dos membros das Forças Armadas no Brasil se aposentam entre os 45 e os 50 anos de idade.
Segundo o professor Boucinhas, da FGV, os militares também são afetados pela questão demográfica que se usa para justificar as reformas na Previdência da iniciativa privada. Ou seja, o envelhecimento da população e o fato das pessoas estarem envelhecendo com mais saúde também deve ter um reflexo para os militares na reserva.
O Ministério da Defesa diz que “tem discutido a questão internamente e com representantes dos demais órgãos do Governo”. Mas, segundo a pasta, “as atividades desempenhadas pelas Forças Armadas requerem de seus membros vigor físico compatível”.
“O aumento da idade mínima provocaria um envelhecimento inevitável da tropa” e resultaria na “redução da capacidade operacional das Forças”.
No entanto, os analistas não concordam com essa visão.
“O grande argumento, inclusive do presidente, é que o militar velho não pode estar na ativa”, afirma Boucinhas. “Mas isso já evoluiu muito. Hoje, alguém com 60 anos pode ser absolutamente ativo – afinal, quanto mais alta a patente, menor a chance de ele estar na linha de frente.”
Segundo ele, há muitos cargos de comando e inteligência que um militar mais velho poderia ocupar.
Reformas
No Brasil, a remuneração dos militares na reserva e as pensões de militares são regidas por uma série de legislações que vêm desde os anos 1960 – a última alteração foi por meio de uma medida provisória em 2001.
O benefício vitalício pra filhas não casadas foi extinto em 2001, portanto, quem entrou após essa data nas Forças Armadas não tem mais esse direito. Mas o governo deve continuar pagando pensões para filhas de militares pelo menos até 2060, quando ainda devem estar vivas as filhas dos últimos militares que tiveram direito ao benefício.
O Ministério da Defesa afirma que “algumas medidas têm sido avaliadas com o intuito de reduzir o déficit das pensões militares, com a ampliação do rol de contribuintes (contribuição obrigatória inclusive por parte das próprias pensionistas) e avaliação das condições de elegibilidade”.
A pasta também cita a reforma de 2001 como parte dos “esforços impetrados pelas Forças Armadas” para a redução de gastos.
A mudança não alterou as outras possibilidades de pensão. Viúvas e viúvos de militares continuam recebendo pensão integral, assim como dependentes de até 21 anos.
Para os analistas, mesmo levando em conta as suas especificidades, a carreira militar no Brasil precisa ser repensada com urgência. “Quando mais se retardar isso, mais vamos sobrecarregar os trabalhadores da iniciativa privada com os ônus”, afirma Boucinhas.
“Como dizia o (um dos criadores do Plano Real) Gustavo Franco, todo privilégio vira imposto.”
Segundo o ministério, a falta de direitos remuneratórios (como o FGTS) “rende anualmente à União uma economia da ordem de R$ 23 bilhões, valor equivalente às despesas com militares inativos. Em outras palavras, significa dizer que a economia gerada pela ausência de direitos remuneratórios para os militares ativos em serviço é transferida para o pagamento de inativos.”
Apesar de afirmar que o sistema atualmente é “autossustentável”, o Ministério da Defesa diz que “tem conduzido estudos no intuito de aperfeiçoar o Sistema de Proteção Social dos Militares, visando, no que couber, a redução de gastos, sem provocar danos colaterais que possam comprometer o cumprimento da missão constitucional das Forças Armadas”.
No entanto, não há uma data para seu envio ao Congresso. “Os estudos já estão em fase bem avançada, porém, em função da complexidade e a constante evolução dos acontecimentos, não podem ser entendidos como um produto acabado”, afirma o ministério.
Fonte: BBC News Brasil
Texto: Letícia Mori