A Constituinte , a Seguridade Social e o Amanhã

“Realmente vivemos tempos sombrios” (Bertolt Brecht)

A partir do inicio da década de 1980 a ditadura civil – militar brasileira foi se tornando insustentável, os movimento operário e popular cresciam em organização e ações , as ordens do dia eram Diretas Já , liberdades democráticas , fim da desigualdade , afirmação dos direitos sociais, reafirmação de uma vontade nacional e da soberania , com rejeição às ingerências do FMI , vindo a desemborcar no processo constituinte (87/88) no qual a sociedade civil exerceu enorme pressão e participação direta, entre outras , por via das“ Emendas Populares”.
A comissão responsável pela elaboração do anteprojeto, a Comissão Arinos, era eclética em termos ideológicos, de modo que o texto resultante recebeu críticas dos setores mais progressistas da sociedade, afinados com o compromisso de uma Constituição renovadora, bem como de setores conservadores. De qualquer modo, o entrechoque das correntes representadas na Comissão resultou num texto de caráter mais progressista.
A fase final da Constituinte vai caracterizar a interferência dos grupos conservadores dominantes tanto do Congresso quanto da sociedade como um todo. Mesmo com muitas perdas para a classe trabalhadora, o texto final, sobretudo no capítulo relativo aos Direitos Sociais, incorporou alguns avanços, contrariando as perspectivas das elites tradicionais. Inovou em determinados princípios, em particular no que diz respeito aos direitos
individuais e à seguridade social .
Pode-se afirmar que esta foi a última Constituição, de um país importante em que as teses do Novo Liberalismo não foram definitivamente triunfantes. Claramente várias teses liberais foram impostas, mas no conjunto a Constituição não pendeu para o lado liberal, individualista, privatista.
O norte maior da Constituição foi a Dignidade da Pessoa Humana assumida como valor fundamental constitucional.
Alguns exemplos destas muitas contradições que carregaram a Constituição de 1988 são lapidares: ao mesmo tempo em que se consagra a propriedade privada, ela diz por outro lado o limite que esta tem em razão da função social que deve cumprir. Mas há exemplos de claros avanços como o que tange a Seguridade social .
A maior conquista foi o texto constitucional ter colocado no seu centro a Dignidade da Pessoa Humana, aqui mesmo com a conotação política.
No conflito de interesses expresso no processo Constituinte 1987/88 triunfou a concepção de uma Seguridade Social como um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social com universalidade da cobertura e do atendimento; uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; irredutibilidade do valor dos benefícios; equidade na forma de participação no custeio;  diversidade da base de financiamento; caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.

Sem sombra de dúvidas a Seguridade Social permitiu maior alcance da proteção social à população brasileira. Em uma sociedade que em alguns anos antes a maioria da população não era coberta pelos serviços de saúde, previdência e assistência, agora a universalidade da cobertura e do atendimento é um avanço muito significativo e importante para a proteção social. A uniformidade de serviços e benefícios às populações urbanas e rurais também marcam o caráter progressista de parte dos objetivos da Seguridade Social, e o caráter democrático e descentralizado da administração favorece uma melhor execução dos serviços com maior aproximação das realidades locais.

O grande avanço , da Constituição Federal de 1988 em relação a Previdência Social foi a ampliação e uniformização dos benefícios para as populações urbanas e rurais . Entretanto, mudanças mais significativas alcançaram a população rural que historicamente vinha sendo colocada à margem dos direitos previdenciários. Portanto, no âmbito da política de Previdência Social, a Constituição promoveu inúmeros avanços e conquistas que apenas um ambiente democrático favorável seria capaz de prescrever legalmente.

Quanto à política de Saúde, outrora vinculada a medicina previdenciária, excluindo, desta forma, a maior parte da população dos serviços médicos, foi profundamente afetada com o advento da CF/1988. A implantação do modelo do SUS tem por objetivo um rompimento radical com o modelo anterior de gestão da Saúde Pública, tendo em vista que através da instituição do direito universal e integral à saúde, elimina – se a característica histórica da segmentação de clientelas do sistema de proteção social brasileiro, voltado para o trabalhador formal, no caso do INAMPS; rompe-se, ainda, através dele, o modelo de financiamento anteriormente vigente, baseado fundamentalmente em contribuições de empregado e empregador.

Na política de Assistência Social o marco da Constituição de 1988 foi mais expressivo do que nas outras duas políticas da seguridade social. Isto porquê pela primeira vez a assistência social passa a ser tratada na perspectiva do direito considerando-a como política pública, rompendo com os pressupostos caritativos e assistencialistas que marcaram a história desta. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice. As
ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social. Inaugurou-se desta forma um padrão de proteção social afirmativo de direitos superando – se as práticas assistenciais e clientelistas, além do surgimento de novos movimentos sociais objetivando sua efetivação. O Estado deve passar a assumir a responsabilidade por políticas públicas.

O modelo constitucional ficou caracterizado pelo desenho dos sistemas de políticas sociais de saúde e de assistência de forma descentralizada e participativa. Os Constituintes preocuparam-se em reduzir a vulnerabilidade do sistema de seguridade social, cuja base de contribuição sobre a folha de salários havia se demonstrado pró-cíclica, inviabilizando as finanças providenciarias nos momentos de crise econômica, quando a população mais demandas apresenta. Além disso, a adoção de um modelo solidário e redistributivo implicou no imediato aumento das despesas, como por exemplo, ao duplicar o valor dos benefícios rurais com sua equivalência ao salário mínimo urbano. Para tanto, foram diversificadas as fontes de financiamento, e a Constituição estabeleceu que “a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados,
do distrito Federal e dos Municípios, e das contribuições sociais.

A concretização deste modelo de Seguridade Social se realizaria com a criação do Orçamento da Seguridade Social, modalidade de integração, nunca implementada, de todos os recursos oriundos das distintas fontes, a serem distribuídos entre os três componentes: saúde, previdência e assistência.

O arcabouço legal da Seguridade Social seria completado com a promulgação das leis orgânicas, em cada setor, que finalmente definiriam as condições concretas pelas quais estes princípios constitucionais e diretivas organizacionais iriam materializar-se. No entanto, a correlação de forças que favorecera a promulgação deste modelo constitucional havia mudado e a promulgação das leis orgânicas só foi possível graças à rearticulação das forças reformistas, para pressionar e negociar com um governo de orientação claramente centralizador e liberal.

É na esteira do discurso reformista, de cunho marcadamente neoliberal, ditado pela orientação ortodoxa na economia nos últimos anos, que se desenvolveram os debates acerca da necessidade de reorganização do modelo de seguridade. A regulamentação dos novos dispositivos constitucionais relativos à seguridade social foi bastante conflitiva.
Podemos concluir que não houve, por ocasião da Assembleia Nacional Constituinte, condições políticas de construção de um pacto social capaz da inclusão da população carente e excluída ao longo dos séculos, que permitisse a consecução de políticas universais de cidadania efetivas.
E agora volvidos 30 anos , após a promulgação da Constituição , podemos dizer que estamos vivenciando uma das suas mais graves crises , que ficou evidenciada cerca de dois anos atrás, ao tempo do procedimento de impeachment da então presidente da República Dilma Rousseff .
Desde 2016, algumas ações adotadas pela coalizão política que se formou para viabilizar o impeachment e sustentar o governo Temer possuem um núcleo comum: a deliberada desfiguração do quadro de direitos fundamentais que é o núcleo da Constituição de 1988.
A promulgação da Emenda Constitucional no 95, que fixa um teto para os gastos públicos, assim como a aprovação da Lei no 13.467/2013, a chamada “reforma trabalhista”, são exemplos concretos de um movimento de reação contra a Constituição de 1988, pois subtraem, de forma clara e direta, o direito das próximas gerações de deliberar sobre as modalidades de gasto dos recursos públicos (inviabilizando a concretude de direitos e garantias estipulados ao longo do texto constitucional), e flexibilizam ao extremo o núcleo da proteção social ao trabalhador que a
Constituição de 1988 estabeleceu.
Identificamos com manifesta preocupação , o perigo real de um esvaziamento gradativo da Constituição de 1988. A persistirem os movimentos desconstituintes , e a manterem-se os ataques ao núcleo do texto ora vigente, corremos o risco de não mais restaurar um mínimo padrão de estabilidade institucional com todas as consequências inerentes à quebra do Estado de Direito.

Ás vésperas da eleição presidencial de 28 de outubro de 2018 …há perigo na esquina…

Marilinda Marques Fernandes
Advogada especializada em Direito da Seguridade Social

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