Os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras estão severamente ameaçados em um contexto de avanços tecnológicos em que prevalece a política de deslaborização do emprego.
O estado atual do sistema de relações de trabalho evidencia deformações movidas por uma política de deslaborização do sistema de emprego, que privam trabalhadoras e trabalhadores de seus direitos básicos consagrados há décadas em nossa legislação nacional.
Os avanços que retrocedem
É comum ouvir falar dos avanços tecnológicos e das novas ferramentas digitais (TICs, tecnologias da informação e comunicação), sua incidência nos processos de produção como na organização e gestão do trabalho.
Destaca-se seu impacto imediato e inexorável no modo de conceber novas formas de inter-relações empresariais e trabalhistas, cuja consciência necessária deve ser a adaptação das regulações normativas respectivas para estar à altura das exigências atuais.
Simultaneamente se apresentam mudanças que velozmente vêm sendo registradas na estruturação, funcionamento e organicidade das empresas, para obter maior competitividade e produtividade e inserir-se em um mercado globalizado que lhes impõem para ser rentáveis – ou maximizar as ganâncias – atuar sobre os custos operacionais que, na prática, se referem basicamente aos laborais.
Não é difícil concluir que, a partir dessa perspectiva de análise e descrição da realidade, próprias do neoliberalismo, o trabalho humano se compara a uma mercadoria como um fator mais constitutivo do Mercado. Concepção que há mais de um século é universalmente rejeitada, como resulta de Declarações e Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos, convenções da OIT, Encíclicas Papais, entre muitos outros precedentes similares.
Desaparecem as garantias básicas
Se diz também que as “crises” oferecem oportunidades, as quais quanto mais se aprofundam – como o que ocorre na Argentina – provocam uma acentuação das desigualdades preexistentes.
No âmbito trabalhista, onde a desigualdade entre trabalhadores e empregadores é a característica típica das relações que estabelecem, a crise se traduz no aumento da desocupação, redução do salário real, perda de benefícios setoriais, deterioração das condições de trabalho com o consequente aumento dos riscos de acidentes, extensão da duração da jornada sem incidência remuneratória compensatória.
A tal ponto chega, então, a precarização do trabalho, que não é imprescindível para atingir a flexibilização desejada e contar com novas regulações legais ou por acordos coletivos.
Entretanto, este último segue sendo um objetivo central do setor empresarial para assegurar a consolidação do preconceito no grau de tutela e em um básico garantismo laboral. São conscientes da função protetora inerente ao Direito do Trabalho, como do impacto que a flexibilização normativa implicaria quanto a uma posterior tentativa de recuperar os níveis de proteção perdidos.
Semelhanças assustadoras
A concentração do Capital em grupos empresários como a descentralização e externalização de diversas áreas, recorrendo a diferentes mecanismos corporativos (mediante unidades satélites) ou subcontratações, é cada dia mais comum.
Ainda que essa condição, que costuma ser utilizada como imagem de marketing reveladora da envergadura empresarial, costuma ser abandonada na hora de assumir responsabilidades pontuais frente às dívidas contraídas – em especial, as de origem trabalhista – por alguma das sociedades que constituem ou contribuem com a atividade do Grupo Econômico.
Foi acrescentado o abuso das terceirizações no interesse de derrubar direitos trabalhistas ou de fugir de responsabilidades de todo tipo, como também o abuso de certas modalidades de trabalho e de contratação, que se verifica com a aparente – porém falsa – atribuição de jornadas de trabalho reduzidas ou a provisão de mão de obra por intermédio de Agências de Serviços Temporários sem que haja ocorrência alguma que a justifique ou sob a ideia de sistema de aprendizagem, que não o é na realidade.
Não obstante a precarização que essas manobras resultam para aqueles que são admitidos do modo antes citados, o curioso é que se chegou a um extremo da deslaborização das relações de trabalho que, na atualidade, podem considerar-los – eufemisticamente – como “privilegiados”, desde que tenham um “emprego” reconhecido como tal.
A nefasta combinação que vem ocorrendo entre tecnologias, plataformas, aplicações de celular e sistemas digitais, que coroam o promovido empreendedorismo, abrange fenômenos realmente surpreendentes de exploração das pessoas empregadas por empresas que se beneficiam de suas funcionalidades trabalhistas.
Os casos de “Rappi” e “Glovo”, entre outros que já foram motivo de numerosas denúncias, com o lema de seja seu próprio chefe, convocam para a realização de tarefas de distribuição de produtos recorrendo a contratações que se pretendem alheias a uma relação de emprego. Porém, o pouco que as analise se nota que, muito pelo contrário, exibem todas as caraterísticas de uma relação de dependência que não lhes é reconhecida.
É preciso destacar que aqueles que são empregados por essa figura distorcida são privados de toda cobertura trabalhista, previdenciária e por acidentes de trabalho, tampouco são compensados pelo uso de veículos (motos, bicicletas) de sua propriedade, nem são responsabilidades da empresa os gastos de manutenção, danos ou roubos dessas ferramentas de trabalho. Resumindo, são os empregados que devem pagar o uniforme de trabalho e o equipamento para a distribuição encomendada.
A precarização dessas formas de emprego não se limita ao aqui referenciado, mas sim se acentua pelas condições de trabalho que lhes são impostas.
Disponibilidade permanente diária e semanalmente para que sigam recebendo pedidos, alta probabilidade de que sejam postergados ou substituídos atendendo à constante incorporação de novos trabalhadores, um ritmo de trabalho extenuante com corridas cotidianas de dezenas de quilômetros e que se promove para resultar credores a melhores destinos, uma magra retribuição cuja efetiva liquidação também está sujeita ao arbítrio patronal.
Difícil será encontrar algum parecido com o trabalho digno e objeto de proteção que assegura a Constituição Nacional, as semelhanças em todo caso remontam ao modo como se trabalhava no início do Capitalismo
As responsabilidades institucionais
Combater as novas formas de exploração trabalhista é uma responsabilidade de toda a sociedade, rejeitando a aceitação acrítica de propostas de emprego semelhantes e sua naturalização como emergentes inevitáveis de transformações próprias do século XXI.
Entretanto, em primeiro lugar compete ao Estado intervir no controle e fiscalização do trabalho, efetivando as garantias de um desempenho em condições dignas, gozando das tutelas e ajustadas à normativa vigente.
Tarefa que não diz respeito somente à Secretaria do Trabalho, mas também e muito particularmente aos juízes do trabalho, que devem ser fiéis guardiões dos princípios, direitos e valores que consagra nossa Lei Fundamental.
É certo que, como sempre resultou determinante para a defesa e conquista de direitos, será imprescindível a autotutela dos trabalhadores através de suas organizações sindicais. Tanto na detecção, denúncia e consequente defesa em casos de abusos trabalhistas, como na cobrança dos Poderes do Estado para que atuem de acordo com suas respectivas competências tornando efetiva a garantia de proteção do trabalho em suas diversas formas.
Ainda que seja um paradoxo se apresentarem como modernas modalidades e práticas arcaicas de organização do trabalho, a realidade imperante supera a ficção e exige uma reação imediata para impedir sua consolidação.
Fonte: El Destape
Tradução: DMT
Texto: Álvaro Ruiz (Advogado trabalhista com experiência na assessoria de sindicatos)