Abuso do legislador ordinário para emendar a Constituição: a tentação da exceção

Auto-observada e auto descrita, a sociedade — vista no campo da subjetividade pública — nunca coincide consigo mesma. A unidade do olhar e da observação resulta, como ordem, apenas numa síntese formal acordada num rito provisório, descrito pela assembleia que formalizou a Constituição. “Momentos constitucionais” existem, todavia, pelos temas da política, que fazem com que a sociedade se “desidentifique” da autocompreensão dominante que fez a Constituição. Trata-se da crise de um sistema, dentro do qual as regras do seu funcionamento já são insuficientes para salvá-lo ou para manter a sua estabilidade, exclusivamente centrada nas suas formas constituídas: é quando sobrevém a tentação da exceção [1].

A tentação da exceção está presente no Estado do Direito quando o poder “tende a fugir do direito, para tomar decisões de forma autárquica, ou seja, tende a evitar o controle social para ser capaz de agir unilateralmente”.[2] Esta ideia de Franz Neumann é importante para discutir as vulnerabilidades do direito contemporâneo, assediado pelo poder fora da lei.

A “tentação da exceção” é o elemento subjetivo candente que compõe a democracia liberal e ela, a exceção, pode apresentar-se como irrupção violenta por parte dos que, no poder, detém meios e força para isso, como pode ser provocada de dentro do sistema de poder, para fora dele, chamando forças paralelas ao Estado para atuarem contra a ordem. Por ser igualmente um processo corrosivo da normalidade, atuando para anular a força normativa da Constituição que veio do Poder Constituinte legítimo ele é, ora perceptível como mutação, ora como falência sistêmica da ordem.

O tripé sobre o qual se assenta a análise de Neumann é o seguinte: “a) a tendência do poder de fugir do Direito; b) a ausência de ligação necessária entre Capitalismo e Estado de Direito; e c) não identidade entre Estado de Direito e direito formal, fatores (que) permitem questionar, tanto o diagnóstico do “estado de exceção”, quanto relativizar a discussão sobre uma suposta “crise do direto”.[3]

Tomando como ponto de partida esta ideia — a “ideia de fuga do direito” — entende-se por que “o poder tende a fugir da formalização e do controle social”, para estimular “medidas de exceção; ou mesmo de de-juridificação de certas atividades (realizadas) para se apropriarem privadamente do poder de criar normas”. [4] O poder de criação de normas fora dos limites explícitos da Constituição democrática é a porta aberta para a exceção.

Os poderes constituídos, para chancelar a famigerada “PEC dos Precatórios”, invocaram a competência conferida ao legislador na Seção do Processo legislativo, enunciada no caput do artigo 60, da Lei Maior: “a Constituição poderá ser emendada, mediante proposta…”. Ocorre que as Emendas propostas, em tese violaram direitos que estavam guarnecidos pelas duas garantias fundamentais, ambas protegidas pelas cláusulas pétreas do § 4º do mesmo artigo: “§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – A forma federativa de Estado; (…) IV – Os direitos e garantias individuais.”

Foi que ocorreu, embora no STF já tivesse se produzido um alerta sobre a violação dos limites explícitos ao chamado poder de emenda, quando os poderes constituídos aprovaram emendas que adiavam o pagamento de precatórios habilitados contra estados e municípios, atrasados por vários anos. É o voto da relatora ministra Rosa Weber que esclarece: “Pode o constituinte reformador interferir na efetividade da jurisdição, nesse poder de realizar o Direito com plena eficácia vinculativa em lides já solucionadas por decisões com trânsito em julgado, ao abrigo, portanto, da autoridade da coisa julgada?  Para mim, com todas as vênias, a resposta é negativa.  Compartilho da compreensão dos que conferem exegese ampla às cláusulas pétreas do artigo 60, § 4º, do nosso texto magno”. E prossegue a ministra: “Entendo que também o poder constituinte derivado ou reformador — e não apenas o legislador ordinário — está submetido ao postulado da irretroatividade consagrado no artigo 5º, XXXVI — a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (…) a lei a que o constituinte originário veda, que prejudique o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada não é apenas a norma infraconstitucional, mas também a emenda constitucional (…)”. (Disponível aqui)

Das limitações da competência para emendar a Constituição

A equiparação dos poderes constituídos ao poder constituinte, que é a expressão primordial da soberania popular, deslocaria para o Estado, enquanto soma de instituições criadas pelo constituinte como burocracia estável, o atributo da soberania, restituindo a ele, Estado instituído pelo constituinte, o pleno domínio sobre a sociedade.

A soberania que o Estado detinha na época do Estado absoluto subsistiu, na prática, durante o Estado de direito liberalO Parlamento é que decidia se as leis que editava estavam em conformidade com a Constituição e os poderes constituídos podiam emendá-la, usando o mesmo rito das leis ordinárias.

O Estado como burocracia — os poderes constituídos — detinham a soberania internaque se configurava pela inexistência de qualquer poder acima da instituição. Só com o advento do Estado Constitucional de Direito, surgido na Europa no segundo pós-guerra, a soberania do Estado feneceu, no sentido de que passaria a residir noutro lugar: na Assembleia Constituinte.

Em sentido contrário,  na época liberal pós-absolutista, o próprio Parlamento é que decidia sobre a conformidade das leis que editava, com a Constituição, com um autocontrole alterável sem obstáculos ou dificuldades, pelos poderes constituídos. Remanescia, assim, no imaginário social, a crença na soberania do Estado enquanto “forma normativa” cuja função soberana nela reside.

O novo constitucionalismo alterou radicalmente esta situação, consagrando a soberania popular: a Constituição não seria mais editada pelo Estado, mas sim pelo povo soberano no processo constituinte. A supremacia da Constituição sobre os poderes constituídos implicava em reconhecer à manifestação da soberania popular nela materializada, que deveria estar num patamar superior ao das manifestações subsequentes da soberania popular, na vida cotidiana da democracia.

Segundo Ferrajoli, produziu-se uma inovação na própria estrutura da legalidade, talvez “a conquista mais importante do direito contemporâneo: a regulação jurídica do direito positivo mesmo, não somente quanto às formas de produção, senão também no que se refere aos conteúdos produzidos“. [5]

No pós-guerra

Na nova concepção, a Constituição é obra do povo soberano no processo constituinte, editada através de seus mandatários. É a Constituição que institui o Estado e o submete ao Direito, assegurando a sua supremacia sobre ele. Ela é também, agora, a lei de organização da sociedade, trazendo “um caderno de encargos do Estado, das suas tarefas e obrigações, no sentido de satisfazer as necessidades econômicas, sociais e culturais dos cidadãos e dos grupos sociais.” [6]

As correntes políticas identificadas com a doutrina do liberalismo econômico extremado, com o avanço recente de partidos neofascistas, vêm pautando reformas em vários países com o objetivo de eliminar garantias institucionais, suprimindo ou esvaziando a efetividade dos direitos fundamentais, sociais e individuais, que foram positivados extensamente nas constituições dos países democráticos, centrais e periféricos.

No Estado Constitucional de Direito o povo soberano não transfere o exercício da soberania ao Estado (como poderes constituídos), o que valeria como um gesto de devolução a quem era o seu titular ao longo de muitos séculos. O mandato político não é mais um mandato com poderes gerais para exercer discricionariamente o comando da instituição. O mandato político confere agora, aos mandatários, competências específicas (chamadas no instituto do mandato civil de poderes especiais).

Como ensina Kriele, “o Estado constitucional é um Estado de competências e, no seu âmbito, só cria direito quem esteja habilitado a fazê-lo, então o verdadeiro Direito(…) é o que vem a ser, no final do processo que o revela e declara”[7], e o órgão judicial — instituído pela Constituição para garantir a sua supremacia– identifica e sana as ações ou omissões que a desfiguram. A iniciativa é atribuída a instituições criadas pela própria Constituição (artigo 60), recortadas nos poderes constituídos e nas instituições da sociedade, que são legitimados para as ações constitucionais”[8].

O Tribunal Constitucional é uma garantia jurisdicional das garantias postas na Constituição, como a inviolabilidade dos direitos fundamentais e a igualdade perante a lei.

O artigo 102 da CF dispõe que “compete ao Supremo Tribunal Federal precipuamente a guarda da Constituição”, acrescendo várias outras elencadas no mesmo artigo, especialmente de privilégio de foro: o STF recebe recursos dos tribunais inferiores que contêm questões constitucionais, exercendo assim o controle das decisões judiciais, no denominado controle concreto da constitucionalidade dos atos dos três poderes.

Interessa destacar que a garantia da igualdade na aplicação da lei e a garantia da inviolabilidade dos direitos, objetivadas na legislação ordinária, são asseguradas pelo Superior Tribunal de Justiça, que julga os recursos na hipótese de violação do direito objetivo e de desigualdade na aplicação da lei, uniformizando a jurisprudência.

Podemos concluir que as Emendas dos precatórios violaram direitos fundamentais de um grupo social, recortado da comunidade social. Esses direitos fundamentais violados são assegurados pelas duas garantias fundamentais. A garantia da inviolabilidade dos direitos e a garantia da igualdade perante a lei [9] — também nas suas dimensões, de igualdade na edição da lei e igualdade na aplicação da lei.

Estas garantias são reconhecidas como garantias primárias, relevantes porque, sendo inscritas na Constituição, estão fora do alcance do legislador ordinário. Mas elas são insuficientes para realizar a sua função protetiva, porque não incidem automaticamente. As normas, todas as normas, não incidem sozinhas, elas têm de ser aplicadas por pessoas.

Para sua aplicação estas necessitam de garantias jurisdicionais, instituídas para serem acionadas pelos titulares dos direitos e/ou garantias primárias. A iniciativa do cidadão busca tutela jurisdicional e o Tribunal Constitucional explicita a garantia secundária, oferecida aos titulares de direitos e garantias violados.

As assembleias constituintes do segundo pós-guerra instituíram o Estado Constitucional de Direito, que ultrapassa o projeto kantiano, assegurando, além da liberdade negativa, também a liberdade positiva, propiciando aos cidadãos a intervenção na determinação das suas condições de vida.

A liberdade positiva conta com a mediação das organizações intermediárias existentes na sociedade, tais como partidos políticos, sindicatos movimentos sociais e comunidades organizadas. Se partidos, sindicatos e movimentos sociais, se intimidam ou se ausentam do contexto de crise – já em direção à exceção – o Tribunal Constitucional bloqueia a tentação autoritária fazendo valer sua autoridade.

Fica evidenciada a relevância da instituição do Tribunal Constitucional, mas convém lembrar que a garantia jurisdicional instituída pelo direito não é instransponível. Pode ser silenciada e mesmo extinta pelas armas em poder das milicias e/ou pelos tanques e canhões apontados para as instituições democráticas.

Daí a necessidade de mobilização, em épocas como a que vivemos, tanto da sociedade organizada — como a garantia derradeira situada na linha de trincheiras de defesa da democracia — bem como dos Tribunais da República, que vem acordando manifestações corretivas da exceção, em sequência, tendo à frente a nossa Suprema Corte.

Notas

1 CHRISTODOULIDIS, Emilios. Constitucionalismo político e a ameaça do “mercado total”; tradução Pedro Canário . São Paulo, SP: Editora Contracorrente , 2022, p. 123.

[2] RODRIGUEZ,  José Rodrigo. Fuga  do Direito: um estudo sobre o direito contemporâneo a partir de Franz Neumann (série direito em debate. Direito desenvolvimento justiça). São Paulo: Saraiva 2009. p.XXVIII

[3] RODRIGUEZ,  José Rodrigo. Fuga  do Direito: um estudo sobre o direito contemporâneo a partir de Franz Neumann (série direito em debate. Direito desenvolvimento justiça). São Paulo: Saraiva 2009. p.XXIX.

[4] dem. p.XXIX.

[5] FERRAJOLI, Luigi. “Derechos y garantias. La Ley del más Débil”. Madrid: Editorial Trotta, 1999. p. 20.p. 19.

[6] FERRAJOLI, Luigi. A Soberania no mundo moderno: nascimento e crise do Estado Nacional. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 32.

[7] KRIELE, Martin. Introducción a la teoría del Estado. Buenos Aires: Depalma, 1980. p. 151; GADAMER, Hans-Georg. A ideia do bem entre Platão e Aristóteles. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 115

[8] LAURINDO, Marcel Mangili. O Império da Lei: o Estado de direito entre o liberalismo e o fascismo.  231 p. Tese (doutorado) – UFSC, Centro de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-graduação Em Direito, Florianópolis, 2021. Disponível em:

https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/229778/PDPC1571-T.pdf.

[9]GENRO, Tarso. Os Fundamentos da Constituição no Estado de Direito. In: Tratado de Direito Constitucional 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2010. p. 143.

Rogério Coelho é advogado, autor, entre outras publicações: Estado Social do Trabalho e do empreendimento(et alii), Degradação e resgate do Direito do Trabalho: contributos para uma doutrina constitucional de defesa dos direitos (coord.) e Trabalho, partido e mercado na crise neoliberal,  novo projeto social-democrata (et alii).

Tarso Genro foi Ministro da Justiça e autor de obras de Teoria do Direito e Teoria Política, entre outras Utopia Possível e Introdução Crítica ao direito: estudos de filosofia do direito e direito do trabalho.

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