O Serviço de Assessoria Jurídica Universitária promoveu na última semana, entre os dias 19 e 21 de outubro, a Semana de Direitos Humanos, Cidadania e Acesso à Justiça, que teve como tema “AS MULHERES NA SOCIEDADE”.
A programação contou com um painel de discussão sobre as principais reformas na legislação das trabalhadoras domésticas, que teve lugar no Salão Nobre da Faculdade de Direito, dia 21/10, às 20:40, com a presença da advogada especialista em seguridade social, Dra. Marilinda Marques Fernandes e da Dra. Michele Savicki, da ONG Themis.
A primeira fala desta mesa de debate foi da representante da ONG Themis, Michele Savicki, que fez um panorama histórico do trabalho doméstico desde sua vinculação com a escravidão no país, apresentando estatísticas que mapeiam a categoria no Brasil e, mais especificamente, no Rio Grande do Sul.
Há hoje cerca de 7 milhões destes profissionais no país, incluindo-se na categoria trabalhadores de limpeza, motoristas particulares, cuidadores de idosos, babás e jardineiros, sendo composta hoje em cerca de 93% por mulheres. Cerca de 20% das mulheres economicamente ativas no país são empregadas domésticas. No Rio Grande do Sul, que possui cerca de 13% de população negra, 80% das empregadas domésticas são brancas, estatística inversa a de muitos outros estados do país. No estado, 47% destas trabalhadoras possuem Ensino Fundamental incompleto, sendo 48% mensalistas com carteira assinada, 20% mensalistas sem carteira assinada e 32% diaristas.
Em sua apresentação, Michele apontou os avanços conquistados em relação a direitos adquiridos a partir da regulamentação da legislação de 2013 com a Lei 150 de 2015, prevendo, entre outras coisas, fundo de garantia, seguro desemprego, salário mínimo, adicional noturno, creches gratuitas, seguro contra acidente, limite de 8h diárias e 44h semanais de trabalho, proibição de trabalho para menores de 18 anos e de discriminação na admissão. A categoria também tem hoje reconhecidas horas extras, mas esse direito ainda necessita regulamentação, o que se mostra difícil em função de não haver um sindicato patronal para compor a negociação com o sindicato dos trabalhadores domésticos para constituição de acordos e convenções coletivas. Hoje parte do valor das horas extras podem ser convertidas em banco de horas mas, como os acordos têm sido feitos de forma individual com os patrões, ocorrem muitas distorções, já que, diferentemente do trabalho fabril, nos lares é difícil haver um registro preciso de horas trabalhadas.
Michele cita também alguns direitos que estas trabalhadoras ainda não têm, como adicional de insalubridade e participação nos lucros. Além disso, critica que, apesar de o artigo 1° da lei considerar vinculo de trabalho doméstico o de quem trabalha mais de dois dias por semana no mesmo local, não sendo obrigada a assinar carteira por tempo inferior a este mínimo, a CLT diz que deve ser reconhecido vínculo trabalhista a todo aquele que não prestar trabalho eventual. “Médicos que fazem 2 plantões por semana em um hospital têm careira assinada, por exemplo, ou seja, qualquer trabalho que seja periódico, mesmo que apenas uma vez por semana, configura relação não eventual de trabalho”, afirma Michele.
Por fim, Michele critica o baixo valor dado pela nossa sociedade ao trabalho doméstico e o não reconhecido desta função tão essencial, que gera cuidado, carinho e limpeza a todos que dele se utilizam, apontando para a necessidade da construção de um futuro diferente, finalizando fazendo um chamamento aos presentes “por uma advocacia mais combativa, que pensem a defesa dessas trabalhadoras para que tenham condições iguais às dos demais trabalhadores”.
A advogada Marilinda Marques Fernandes, que com frequência trabalha junto à ONG Themis, inclusive nas discussões sobre a PEC 72, inciou sua participação no painel falando sobre o trabalhador doméstico classificado como sendo historicamente um sujeito invisível na sociedade, desde a escravatura, que nunca foi enquadrado entre os trabalhadores como sujeito de direitos. Apenas em 1972 o trabalho doméstico foi, precariamente, regulamentado, passando a integrar o ordenamento jurídico brasileiro.
Para Marilinda a Constituição de 1988 foi elaborada com participação ativa da classe trabalhadora mas acabou contemplando, por outro lado, a elite no que concerne os direitos das trabalhadoras domésticas, consagrando a descriminação secular em relação às mesmas.
O artigo 7° da constituição excluía, até a Emenda Constitucional nº 72/2013 as trabalhadoras domésticas da proteção de direitos garantidos aos demais trabalhadores. Apenas quando da Convenção 189 da OIT de 2011, que impõe a observância de um mínimo de dignidade ao trabalho doméstico, o Brasil passa a discutir o assunto e construir a Emenda Constitucional 72. Porém, esta foi espetacularizada pela mídia do país com o intuito de convencer a população de que com a lei seria muito difícil pagar por este serviço, em um claro loby para não equiparar a categoria com o restante dos trabalhadores.
Marilinda analisa de forma mais detalhada a questão dos direitos previdenciários da categoria. Para ela a Previdência Social sofre hoje com o discurso de crise e da necessidade de reformas austeras, padrão que têm se repetido pelo mundo todo. Porém, de acordo com a advogada, os próprios auditores fiscais da Previdência emitiram notas afirmando que a mesma não é deficitária e, para a advogada, “não nos devemos deixar levar pelo discurso catastrofista que tem como alvo a retirada de direitos”.
O artigo 20° da Lei n°150/15 afirma que a contribuição para a Previdência é obrigatória, tanto por parte do empregado quanto do empregador. A advogada comenta que “há muitos casos em que, no momento de solicitar a aposentadoria, a trabalhadora descobre que o seu patrão descontou de seu salário o valor referente contribuição à Previdência mas nunca realizou o pagamento junto ao INSS. Porém, é possível levar ao INSS comprovação de trabalho, como a carteira assinada, e o órgão cobrará do empregador o valor que ele deve”.
Porém, aponta Marilinda, houve um reajuste na forma do custeio da Previdência na categoria, diferente em relação a dos demais trabalhadores, devendo esta contribuir com entre 8% e 11%, dependendo do salário, enquanto o empregador deve contribuir com 12%, sendo 8% para a Previdência, 3,2% para o pagamento da indenização compensatória em caso de demissão imotivada e 0,8% para um fundo de seguro acidente de trabalho. Em caso de demissão sem justa causa 40% do valor do fundo será pago ao trabalhador e em caso de aposentadoria, morte ou de demissão por justa causa, os valores são revertidos inteiramente para o empregador.
No que se refere à doenças e acidentes de trabalho, aponta Marilinda, é difícil estabelecer nexo causal, principalmente por que não há estudos comprovando as doenças que assolam a categoria, como existem sobre categorias como a dos bancários e metalúrgicos, por exemplo, com análises das possíveis doenças relacionadas a natureza de sua função. “Sabemos que entre os metalúrgicos ocorrem muitos casos de LER, entre os bancários também, assim como estress e depressão. Mas para o julgador ou perito da previdência é difícil estabelecer nexo entre a atividade de limpar e as lesões por esforços repetitivos das trabalhadoras domésticas”, comenta Marilinda.
Sabe-se que as trabalhadoras domésticas são expostas diariamente a diversos agentes nocivos do ambiente, tendo de utilizar produtos químicos pesados de limpeza e enfrentar situações de risco de acidente, “como lavar janelas pelo lado de fora”, como lembrou Michele, “além de serem obrigadas a lidar corretamente com uma série de aparelhos eletroeletrônicos com os quais não tem familiaridade”, afirma Marilinda.
Para a advogada o fato de os fiscais não poderem observar o dia-a-dia das trabalhadoras domésticas sem hora marcada previamente com seus patrões é o que mais atrapalha a investigação sobre as condições de trabalho dessa categoria, já que não se pode entrar em uma residência ou espaços privados sem autorização. Para ela “se protege o sagrado direito da propriedade privada em detrimento da qualidade de condições trabalhistas”. Já que se trata de um trabalho bastante individual, por sua própria natureza conduzido isoladamente, tendo cada trabalhador pouco contato com outros da mesma categoria, dificilmente há uma organização capaz de reivindicar direitos e, para Marilinda, a falta de mobilização é uma das mais importantes questões mal resolvidas.
Para Marilinda hoje há pouca solidariedade de classe para com as trabalhadoras domésticas, assim como certa conivência de algumas classes sociais com a exploração que sofrem. Para ela a necessidade maior da categoria no momento é organizar forças para mobilizar-se e reivindicar direitos frente a tendência internacional de utilização de mão de obra de imigrantes ilegais neste tipo de serviço. Hoje a maior parte das representantes sindicais são trabalhadoras aposentadas ou afastadas por doença ou acidente de trabalho, já que não há previsão de despensa ou licença para os membros do sindicato e é sempre difícil o envolvimento das trabalhadoras em função da alta carga de trabalho que cumprem.
Por fim, Marilinda comenta que os ataques que vêm sendo desferidos pelo atual governo federal aos direitos previdenciários, com vistas para um futuro aumento da idade e do tempo contribuição mínimos para aposentadoria no país requerem uma organização cerrada na defesa da Previdência Social brasileira, indissociável da garantia da dignidade humana na doença, na velhice e na morte.
Fotos e Texto: Carina Kunze