Por que Piketty incomoda?

 

A crise, em vez de unir os que foram prejudicados por ela, está a aumentar a força ideológica e o poder político daqueles que a causaram. Falo isso sob o impacto da leitura do livro de Thomas Piketty, uma incursão corajosa nas casamatas da Economia Política, sempre sitiadas pelos esbirros que simulam defender os espaços da “economia científica” com os argumentos da superstição.

O estado atual do mundo das coisas e das pessoas resulta da desestruturação que as sociedades criadas no Pós-Guerra sofreram nas últimas quatro décadas. Nos bastidores do livro de Piketty, entre linhas, entrelinhas, gráficos e equações movem-se as mesmas forças impessoais da riqueza socializada que em seus desatinos e inconsciências da ganância privada levaram a humanidade aos tormentos do moinho satânico que desatou duas guerras mundiais e deflagrou a Grande Depressão dos anos 30.

Nos anos 1980, a eleição de Reagan na esteira de Thatcher deu início à derrota do arranjo político e social que, nas ruínas do capitalismo dos anos 20 e 30 do século passado, abriu um espaço de convivência e de solidariedade ao erigir as instituições do Estado de Bem-Estar.

Dados minuciosos sobre a evolução do emprego, dos salários e da distribuição da riqueza e da renda não deixam nenhuma dúvida sobre a natureza das agruras vividas pelos assalariados e dependentes nas últimas três décadas. A eclosão da crise de 2008 tornou ainda mais grave e ainda mais constrangedora a sensação de que a situação vai ficar pior, porque o debate entre políticos, economistas e os arautos da mídia está circunscrito a uma agenda mesquinha: keynesianos e ortodoxos estão discutindo bagatelas.

Ao comentar o livro de Piketty, o colunista do Guardian/Observer Will Hutton chama atenção para a concentração da riqueza nos Estados Unidos e na Europa. Os 10% mais ricos detêm 60% a 70% da riqueza, representada por imóveis, ações de empresas, títulos públicos e outros ativos financeiros. A interação entre essa concentração de riqueza sob a forma financeira, ou seja, a predominância crescente da acumulação de direitos de propriedade que reivindicam uma fração maior do valor criado pelo esforço coletivo favorece os ganhos rentistas e enfraquece o espírito empreendedor.

A “natureza” intrinsecamente rentista do capital financeiro e de sua valorização fictícia se apoderou da gestão empresarial, impondo práticas destinadas a aumentar a participação dos ativos financeiros na composição do patrimônio, inflar o valor desses ativos e conferir maior poder aos acionistas. Particularmente significativas são as implicações da “nova finança” sobre a governança corporativa. A dominância da “criação de valor” na esfera financeira expressa o poder do acionista, reforçado pela nova modalidade de remuneração dos administradores, mediante o exercício de opções de compra das ações da empresa.

A crise não deve ser relegada às querelas dos economistas. Suas consequências já afetam profundamente as formas de convivência criadas no Pós-Guerra e que sustentaram as democracias. O que se observa é que as democracias, massacradas pelo poder da finança, parecem impotentes para formular soluções que preservem os direitos sociais e retomem o caminho da prosperidade compartilhada. Vimos recentemente a manifestação dos espanhóis cercando o Parlamento. Qual foi a palavra de ordem? “Que se vayan todos”. Muito bem. Que se vayan todos. E o que deriva dessa consigna? Qual é a proposta? Qual é o projeto? Estamos muito além de uma crise cíclica do capitalismo.

Estamos em uma crise estrutural da vida civilizada. É isso que está em questão, na Europa, nos Estados Unidos. Apontarei uma manifestação que sustenta esta minha opinião. O candidato à Presidência dos Estados Unidos, Mitt Romney, disse, em uma reunião de coleta de fundos, que os 47% que declaram seu voto no presidente Barak Obama não pagam impostos, não querem trabalhar, não querem ganhar de acordo com seu mérito, como se esses cidadãos tivessem espontaneamente corrido para o colo do Estado em busca de proteção, quando na verdade eles foram compelidos a isso. Curiosamente, a maioria desses cidadãos sobrevive nos estados em que os republicanos costumam ganhar eleições. Há duas questões aí. A primeira delas é a completa incapacidade de perceber – e isso é impressionante – qual é a natureza da situação em que se encontram. Por quê? Porque os Estados Unidos têm o mito da utopia realizada. Se já estamos no paraíso, é impossível sofrer desse jeito. O mundo assiste ao espetáculo que Max Weber chamaria de reencantamento do mundo.

Luiz Gonzaga Belluzzo

FonteCarta Capital

 

 

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