Pela morte de João Gilberto Noll

JOÃO GILBERTO NOLL NA MADRUGADA DE 29 DE MARÇO DE 2017, em pleno outono, nesta cidade de Porto Alegre, de ruas tortuosas, ora cobertas de folhas rolando pelas calçadas, de jacarandás obscenamente floridos de rosa … dói hoje sentir que não mais teremos a ânsia de te ver caminhando de mansinho pelo Centro Histórico, pela Cidade Baixa, passeando teimosamente com a tua mais fiel amiga, a solidão. Não mais te teremos para comentar o último filme, a tua última viagem. Não mais te teremos para comentar este ou aquele autor. Foste sem dúvida um homem militante da palavra, o escritor dessas figuras errantes que nos enchem os olhos diariamente de dor na sua solidão, no seu desamparo. A tua escrita sempre nos arranca da zona de conforto e nos remete ao desalinho do quotidiano.

Dizias: “Vejo a literatura como acontecimento, não apenas como espelho das questões sociais mais imediatas. Mas que ela traga o leitor para um horizonte ritualístico, um horizonte litúrgico. É como se ele sentasse, que fosse lá no palco e participasse junto com o ator (…)”.

Sobre a tua obra escreveu André Montovanni:

“Noll escreve sem saber onde vai chegar – e é sempre comparado a parte narrativa dos seus textos com a linguagem do cinema. É um escritor em cujo texto sentimos a pura intensidade do ato de escrever: uma linguagem que muitas vezes beira o roteiro, descreve espaços, caminhos, sons, tudo com um olhar preciso. Seu texto, desenha formas no imaginário do leitor que aparentemente não passam de linhas soltas, imagens cambiantes e livres. Essa liberdade da sua escritura se perfaz na afirmação, única e exclusiva, de um desejo de narrar.


Já se tornou lugar-comum dizer que os narradores de seus livros estão sempre “em trânsito” e suas narrativas se assemelham a road-movies. Entretanto, mais do que simplesmente em trânsito, seus narradores são exemplos de personagens cuja própria referência de identidade é fragmentada em nome de uma existência mais criativa, lúdica, na qual os espaços exteriores que eles percorrem parecem se afigurar como manifestações das suas próprias subjetividades instáveis, nômades.


Movidos pelos ventos dos acontecimentos, seus narradores/personagens percorrem as infinitas veredas do ser que busca de uma essência interior mais do que o não-encontrável. Não há dicotomias fáceis em suas tramas, aliás, suas tramas não são tão facilmente resumíveis. Realidade e imaginário, tempo e espaço, homem e mulher, passado e presente, dentro e fora, tudo se perde nos fluxos narrativos que compõem uma espécie de desejo em estado de escritura bruta. É comum o narrador avançar e recuar na sua história dando uma impressão de sonho ou delírio psicótico extremamente impactante.


Os romances de Noll apontam uma tendência pós-moderna na literatura brasileira desde o final do século 20, apresentando narrativas fragmentárias e o simulacro como representação de seu narrador. Parece que a história, a saga já não são importantes, mas a narração dessas histórias, que tornam-se uma maneira profunda de contato do leitor com o narrador. Ao terminar de escrever um livro, refaz todo o seu início, pois, fatalmente, estará com linguagem diversa do restante da obra.”

Porto Alegre, 29 de março de 2017
MARILINDA MARQUES FERNANDES

*André Mantovanni é escritor e apresentador de rádio e televisão. Mestrando em Literatura e Crítica Literária (PUC-SP), é especializado em Estudos Literários e formado em Artes Visuais. Atualmente coordena o site www.portalastral.com.br e, desde 2004, como editor, assina as obras da Ghemini Editora.

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